quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A Fotografia e o adeus ao século XX.


A fotografia nasce como uma técnica de massa na passagem do século XIX para o XX. Seu desenvolvimento como linguagem perpassa alguns fatos marcantes desse período histórico. O final do século XIX trouxe muitas transformações em todas as esferas da vida do ser humano. Sob a égide da sociedade industrial, a lógica do mercado destruiu antigos laços sociais, revolucionou hábitos e costumes de produção e consumo, dando à tecnologia o tom dos acontecimentos do homem no início dos anos 1900. O desenvolvimento das ciências e de sua aplicação prática, na forma da engenharia e da medicina, dava aos cidadãos a sensação e a esperança de progresso em todos os níveis humanos. Como um exemplo desses avanços, a fotografia propunha uma revolução na produção de imagens e na comunicação por meio delas. A serviço da Ciência e dos cidadãos comuns, a máquina fotográfica foi um ícone desse processo histórico.
Como elementos teórico e prático desse processo transformador, se destacam o “maquinismo” e o “cientificismo” que, fundidos, moldam boa parte da mentalidade própria da virada do século XX. Baseada na crença da objetividade, neutralidade do conhecimento científico como única forma de aproximar o ser humano da Verdade do Mundo, a mentalidade tecnológica do início do século passado construiu uma sociedade de máquinas como sinônimo de uma vida com precisão científica. Sem participação direta do homem nas suas relações com a natureza e a cultura, o “maquinismo” (na forma de instrumentos tecnológicos e institucionais) garantia a presença da Ciência em todos os níveis de relações sociais. Caíram por terra boa parte dos valores e dos hábitos de vida das pessoas, símbolos regionais e nacionais de tradições seculares. Por onde a industrialização se desenvolveu, quase nada do passado conseguiu ficar em pé. A mentalidade cientificista e maquinista também chegou no universo da Arte e, como elemento corrosivo das tradições nesse meio, aparece a Fotografia e sua industrialização.
Fruto do processo de “modernização” da Arte, a fotografia é parte fundamental do projeto do homem industrial. Com a utilização da máquina como mediadora da arte, a fotografia propôs o aumento do grau de veracidade da representação pictórica, aperfeiçoando a objetividade e a neutralidade dessa tarefa. Para essa sociedade de uma maneira geral, o aparelho fotográfico possibilitou ao mundo (social e natural) a capacidade de se auto-representar. Alienando o sujeito produtor artístico da atividade direta de representar o mundo (em desenhos, pinturas ou gravuras), a fotografia oferece um retrato da realidade nunca antes visto. Por meio de imagens técnicas (ou tecnológicas), a máquina, agora também artística, rompe com todas as tradições visuais e impõe seus produtos como atestados de verdade dando início a era documental/científica das imagens.
Nesse contexto, como produto da lógica fria do mercado, a fotografia se populariza e se torna um veículo de comunicação de massa, promovendo a mentalidade do progresso industrial no universo da Arte. Na defesa do seu estatuto existencial científico, a fotografia negou a intenção (intervenção) direta do homem no trabalho artístico e, em seu desenvolvimento criticou duramente a estética da Arte tradicional. Tal atitude causou uma grande polêmica no universo visual do ocidente (e depois do mundo) defendendo a inutilidade da Arte tradicional no progresso e na democratização da sociedade. O século XX se inicia com a separação entre a Arte e a Fotografia e com a seguinte pergunta: a Fotografia é ou não é uma forma de arte?
Passado mais de meio século dessa polêmica, oriunda da história da industrialização e da ciência do início do século passado, e porque não dizer da fotografia nesse mesmo período, o estatuto do conhecimento científico e do uso da tecnologia na sociedade é outro. Não há como sustentarmos atualmente a proposta de uma Ciência e de uma industrialização neutras e objetivas como norte de nosso desenvolvimento social. Um futuro feito apenas de homens e máquinas também não é mais visto como a única via para uma vida progressista. Testemunhas dos problemas ecológicos e das injustiças sociais da sociedade industrial há algum tempo colocamos em dúvida todos os mitos do início do século XX. O mito de um conhecimento científico neutro no qual somente o objeto do conhecimento possua o direito a palavra e de uma teoria objetiva a respeito do mundo que se apresenta como cópia fiel do que se quer conhecer perdeu boa parte de sua autoridade. O mito da máquina como a forma mais precisa e superior de relação do homem com a natureza, por meio do seu automatismo (este também um outro mito dessa época) cientificidade e neutralidade, não convence mais ninguém, nem mesmo os mais entusiasmados defensores da tecnologia. Os tempos agora são outros e o futuro aponta para novas direções.
Estamos atualmente preocupados na elaboração de um projeto de sociedade sem os problemas e as desilusões do século XX. Nossos olhos estão voltamos com muita atenção para questões como ecologia e democracia e menos para a produção de riqueza. Nesse contexto, a industrialização e a tecnologia vivem um momento de redescoberta de si mesmas. Antes símbolos incontestáveis do sucesso de uma sociedade maquinista, hoje se abrem para a investigação de suas raízes, epistemológicas, pedagógicas e estéticas em um mundo que busca suas bases humanas. A fotografia também sofre esse momento de reconstrução epistemológica e social, momento esse que se preocupa mais com a natureza do conhecimento e do sujeito cognoscente e menos com o valor econômico de seus produtos tecnológicos. Atualmente os conceitos, as imagens e a tecnologia não podem ser pensados independentes do sujeito cognoscente. Estamos deixando para trás uma sociedade crente no desaparecimento da subjetividade e entrando em um momento de redescoberta dos sujeitos tecnológicos e sociais.
A questão típica do início do século passado da fotografia ser ou não ser uma Arte, ou mesmo da possibilidade de uma arte fotográfica, perguntas já respondidas por nossos pais e avós, agora se abrem novamente para o debate no qual é repensada a nova função dos aparelhos industriais para o século XXI. O debate é a marca de nosso momento atual, momento pós-moderno, pós-industrial e, por que não, pós-fotográfico. Para a Fotografia, a conseqüência mais óbvia desse momento é a perda do valor clássico da imagem técnica (ou tecnológica) como documento, como evidência, como atestado de preexistência da coisa fotografada ou como árbitro da verdade. A crença mais ou menos generalizada de que a máquina fotográfica não mente e de que a fotografia é o resultado imaculado de um registro fiel da realidade, enfim, toda a mitologia a que essa forma de arte industrial tem sido associada desde as suas origens, tudo isso está fadado a desaparecer durante o século XXI.
Em nosso século, a fotografia não deve diferir muito da pintura epistemologicamente. A crise da sociedade industrial e de seus mitos (tempos de manipulação digital das imagens e sons) nos aponta para a subjetividade da fotografia. A convivência diária com a televisão e com os meios eletrônicos em geral tem colaborado para uma mudança dos hábitos perceptivos dos cidadãos em relação com as imagens técnicas, principalmente em suas relações com a verdade e a neutralidade. Hoje as imagens produzem o espetáculo.
A imagem tecnológica da mídia do século XXI se mostra ao cidadão como uma produção do visível, como um efeito de mediação como algo se oferece como um texto para ser decifrado ou lido e não mais apenas para ser contemplado, constatado e aceito como foi durante o século passado. Nesse caso, cabe a nós a tarefa de pensarmos a respeito do que virá após a demolição do mito da objetividade da fotografia, das ciências e da tecnologia. O estudo crítico da construção do conhecimento científico e das imagens fotográficas está necessariamente aberto. A tarefa de investigar o modo de funcionamento da fotografia e da Ciência como sistemas de expressão humanos, de seus códigos e convenções e de suas formas epistemológicas e pedagógicas, torna-se cada vez mais urgente.
O século XXI também pode ter seus mitos. Em cimas deles, construiremos nosso presente e futuro. Assim caminha a história dos seres humanos. Entretanto, estamos prestes a virar uma página de nossa existência com o intuito de vermos somente no passado a objetividade, a neutralidade nas relações humanas. Outros valores estão sendo resgatados e criados e com isso boa parte de nossa sociedade material e cultural está em discussão. Para que servirá a fotografia durante o no século XXI? Arte, Ciência ou peça de museu? Cabe a nós respondermos.
Marcelo Sampaio

Um comentário:

  1. Excelente querido irmãozinho!!!
    Na minha opinião infelizmente, acho que a "boa" fotografia para essa geração de agora, é peça de museu, ou eles ainda não foram capaz de entender seu significado.

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