quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A Fotografia e o adeus ao século XX.


A fotografia nasce como uma técnica de massa na passagem do século XIX para o XX. Seu desenvolvimento como linguagem perpassa alguns fatos marcantes desse período histórico. O final do século XIX trouxe muitas transformações em todas as esferas da vida do ser humano. Sob a égide da sociedade industrial, a lógica do mercado destruiu antigos laços sociais, revolucionou hábitos e costumes de produção e consumo, dando à tecnologia o tom dos acontecimentos do homem no início dos anos 1900. O desenvolvimento das ciências e de sua aplicação prática, na forma da engenharia e da medicina, dava aos cidadãos a sensação e a esperança de progresso em todos os níveis humanos. Como um exemplo desses avanços, a fotografia propunha uma revolução na produção de imagens e na comunicação por meio delas. A serviço da Ciência e dos cidadãos comuns, a máquina fotográfica foi um ícone desse processo histórico.
Como elementos teórico e prático desse processo transformador, se destacam o “maquinismo” e o “cientificismo” que, fundidos, moldam boa parte da mentalidade própria da virada do século XX. Baseada na crença da objetividade, neutralidade do conhecimento científico como única forma de aproximar o ser humano da Verdade do Mundo, a mentalidade tecnológica do início do século passado construiu uma sociedade de máquinas como sinônimo de uma vida com precisão científica. Sem participação direta do homem nas suas relações com a natureza e a cultura, o “maquinismo” (na forma de instrumentos tecnológicos e institucionais) garantia a presença da Ciência em todos os níveis de relações sociais. Caíram por terra boa parte dos valores e dos hábitos de vida das pessoas, símbolos regionais e nacionais de tradições seculares. Por onde a industrialização se desenvolveu, quase nada do passado conseguiu ficar em pé. A mentalidade cientificista e maquinista também chegou no universo da Arte e, como elemento corrosivo das tradições nesse meio, aparece a Fotografia e sua industrialização.
Fruto do processo de “modernização” da Arte, a fotografia é parte fundamental do projeto do homem industrial. Com a utilização da máquina como mediadora da arte, a fotografia propôs o aumento do grau de veracidade da representação pictórica, aperfeiçoando a objetividade e a neutralidade dessa tarefa. Para essa sociedade de uma maneira geral, o aparelho fotográfico possibilitou ao mundo (social e natural) a capacidade de se auto-representar. Alienando o sujeito produtor artístico da atividade direta de representar o mundo (em desenhos, pinturas ou gravuras), a fotografia oferece um retrato da realidade nunca antes visto. Por meio de imagens técnicas (ou tecnológicas), a máquina, agora também artística, rompe com todas as tradições visuais e impõe seus produtos como atestados de verdade dando início a era documental/científica das imagens.
Nesse contexto, como produto da lógica fria do mercado, a fotografia se populariza e se torna um veículo de comunicação de massa, promovendo a mentalidade do progresso industrial no universo da Arte. Na defesa do seu estatuto existencial científico, a fotografia negou a intenção (intervenção) direta do homem no trabalho artístico e, em seu desenvolvimento criticou duramente a estética da Arte tradicional. Tal atitude causou uma grande polêmica no universo visual do ocidente (e depois do mundo) defendendo a inutilidade da Arte tradicional no progresso e na democratização da sociedade. O século XX se inicia com a separação entre a Arte e a Fotografia e com a seguinte pergunta: a Fotografia é ou não é uma forma de arte?
Passado mais de meio século dessa polêmica, oriunda da história da industrialização e da ciência do início do século passado, e porque não dizer da fotografia nesse mesmo período, o estatuto do conhecimento científico e do uso da tecnologia na sociedade é outro. Não há como sustentarmos atualmente a proposta de uma Ciência e de uma industrialização neutras e objetivas como norte de nosso desenvolvimento social. Um futuro feito apenas de homens e máquinas também não é mais visto como a única via para uma vida progressista. Testemunhas dos problemas ecológicos e das injustiças sociais da sociedade industrial há algum tempo colocamos em dúvida todos os mitos do início do século XX. O mito de um conhecimento científico neutro no qual somente o objeto do conhecimento possua o direito a palavra e de uma teoria objetiva a respeito do mundo que se apresenta como cópia fiel do que se quer conhecer perdeu boa parte de sua autoridade. O mito da máquina como a forma mais precisa e superior de relação do homem com a natureza, por meio do seu automatismo (este também um outro mito dessa época) cientificidade e neutralidade, não convence mais ninguém, nem mesmo os mais entusiasmados defensores da tecnologia. Os tempos agora são outros e o futuro aponta para novas direções.
Estamos atualmente preocupados na elaboração de um projeto de sociedade sem os problemas e as desilusões do século XX. Nossos olhos estão voltamos com muita atenção para questões como ecologia e democracia e menos para a produção de riqueza. Nesse contexto, a industrialização e a tecnologia vivem um momento de redescoberta de si mesmas. Antes símbolos incontestáveis do sucesso de uma sociedade maquinista, hoje se abrem para a investigação de suas raízes, epistemológicas, pedagógicas e estéticas em um mundo que busca suas bases humanas. A fotografia também sofre esse momento de reconstrução epistemológica e social, momento esse que se preocupa mais com a natureza do conhecimento e do sujeito cognoscente e menos com o valor econômico de seus produtos tecnológicos. Atualmente os conceitos, as imagens e a tecnologia não podem ser pensados independentes do sujeito cognoscente. Estamos deixando para trás uma sociedade crente no desaparecimento da subjetividade e entrando em um momento de redescoberta dos sujeitos tecnológicos e sociais.
A questão típica do início do século passado da fotografia ser ou não ser uma Arte, ou mesmo da possibilidade de uma arte fotográfica, perguntas já respondidas por nossos pais e avós, agora se abrem novamente para o debate no qual é repensada a nova função dos aparelhos industriais para o século XXI. O debate é a marca de nosso momento atual, momento pós-moderno, pós-industrial e, por que não, pós-fotográfico. Para a Fotografia, a conseqüência mais óbvia desse momento é a perda do valor clássico da imagem técnica (ou tecnológica) como documento, como evidência, como atestado de preexistência da coisa fotografada ou como árbitro da verdade. A crença mais ou menos generalizada de que a máquina fotográfica não mente e de que a fotografia é o resultado imaculado de um registro fiel da realidade, enfim, toda a mitologia a que essa forma de arte industrial tem sido associada desde as suas origens, tudo isso está fadado a desaparecer durante o século XXI.
Em nosso século, a fotografia não deve diferir muito da pintura epistemologicamente. A crise da sociedade industrial e de seus mitos (tempos de manipulação digital das imagens e sons) nos aponta para a subjetividade da fotografia. A convivência diária com a televisão e com os meios eletrônicos em geral tem colaborado para uma mudança dos hábitos perceptivos dos cidadãos em relação com as imagens técnicas, principalmente em suas relações com a verdade e a neutralidade. Hoje as imagens produzem o espetáculo.
A imagem tecnológica da mídia do século XXI se mostra ao cidadão como uma produção do visível, como um efeito de mediação como algo se oferece como um texto para ser decifrado ou lido e não mais apenas para ser contemplado, constatado e aceito como foi durante o século passado. Nesse caso, cabe a nós a tarefa de pensarmos a respeito do que virá após a demolição do mito da objetividade da fotografia, das ciências e da tecnologia. O estudo crítico da construção do conhecimento científico e das imagens fotográficas está necessariamente aberto. A tarefa de investigar o modo de funcionamento da fotografia e da Ciência como sistemas de expressão humanos, de seus códigos e convenções e de suas formas epistemológicas e pedagógicas, torna-se cada vez mais urgente.
O século XXI também pode ter seus mitos. Em cimas deles, construiremos nosso presente e futuro. Assim caminha a história dos seres humanos. Entretanto, estamos prestes a virar uma página de nossa existência com o intuito de vermos somente no passado a objetividade, a neutralidade nas relações humanas. Outros valores estão sendo resgatados e criados e com isso boa parte de nossa sociedade material e cultural está em discussão. Para que servirá a fotografia durante o no século XXI? Arte, Ciência ou peça de museu? Cabe a nós respondermos.
Marcelo Sampaio

domingo, 18 de outubro de 2009

A Ciência e a Política: respondendo a alunos.


Os bons alunos sempre fazem os professores refletirem sobre as maneiras mais adequadas de apresentar uma disciplina, seus conteúdos, assuntos e problemas em sala de aula. Através de questionamentos, os estudantes exigem que os professores deixem a “comodidade” acadêmica de lado e procurem novos conceitos para dar respostas as indagações escolares. O importante é que essas respostas não sejam “fechadas” e conclusivas, mas sim “abertas” e reflexivas, isto é, que instiguem os alunos a continuarem seus pensamentos através de novos caminhos.
Certo dia, alguns alunos propuseram a questão das relações entre a Ciência e a Filosofia. Os mesmos afirmaram ter mais atenção as ciências exatas do que a Sociologia (ou ciências humanas) pelo fato das primeiras serem conclusivas, objetivas e partirem da análise de fatos incontestáveis da natureza e não de reflexões, pontos de vista e debates intermináveis como as últimas. Enfim, a Física levaria a um conhecimento da realidade e a Sociologia levaria a discussões políticas.
Essas conversas me fizeram lembrar de alguns estudos que fiz na faculdade acerca da Ciência e de sua história. Nesses estudos, aprendi com meus professores que as relações entre a Física, a Filosofia e a Sociologia são mais estreitas do que eu suspeitava. O diálogo produtivo entre essas áreas do conhecimento, aparentemente estanques e incomunicáveis, foi o caminho apontado por meus professores para eu formular idéias seguras a respeito dessa questão, idéias fiéis ao nível de desenvolvimento atual dos estudos na área da epistemologia. Portanto, haveria tanta política na constituição da Ciência (inclusive na elaboração de seus conceitos mais abstratos e em suas técnicas aplicáveis) quanto no seio de uma comunidade econômica ou esportiva. Em uma expressão, a política estaria presente na Ciência bem antes do cientista se candidatar a um cargo eletivo ou fazer alguma manifestação pública. Nesse caso, os conceitos sociológicos seriam elucidativos para a compreensão mais aprofundada do fenômeno da Ciência.
Desses estudos universitários não posso me esquecer de um pensador em especial que me norteou: Thomas Kuhn. Kuhn foi o mais famoso cientista de sua época. De um modo incomum, começou seus estudos acadêmicos como físico teórico, ou seja, não apenas como alguém interessado em conhecer as teorias da Física em suas diversas aplicações na “realidade”, mas também na história dessa ciência. Esse fato biográfico o levou desde cedo às reflexões filosóficas a respeito do fazer científico. Portanto, as reflexões de caráter mais livre e menos disciplinado marcaram a carreira universitária de Khun e talvez isso tenha sido a sua grande vantagem frente aos teóricos de sua época.
Ao longo de investigações acerca da história da Física, Thomas procurou compreender a Ciência a partir de um contexto sociológico, fazendo muitas descobertas. Nesse contexto, se deu conta de que a maneira comum como vemos o desenvolvimento da Ciência não se ajustava com as maneiras como realmente as ciências nascem e se desenvolvem ao longo do tempo. A maior descoberta de Khun foi que o conhecimento científico não se desenvolve de modo cumulativo e contínuo. Ao contrário, esse crescimento é descontínuo, opera por saltos qualitativos, que não se podem ser avaliados ou justificados em função de critérios de validação lógico-científico tradicionais, mas sim de fatores sociológicos próprios da organização do trabalho científico. Alguém encontra esse posicionamento crítico em relação às ciências nos livros e apostilas do Ensino Médio? Vamos explicar isso nas próximas linhas.
O conjunto de todos os princípios e métodos que constituem uma ciência (transcritos, por exemplo, nos livros e apostilas de Física) é chamado por Kuhn de “paradigma”. Procurando ser fiel ao autor, o conceito de paradigma deve ser entendido em um sentido fundamental: refere-se àquilo que é partilhado por uma comunidade científica, será uma forma de fazer ciência, uma matriz disciplinar. Nesse caso, uma disciplina se torna uma ciência quando adquire um paradigma, isto é, um modelo. Assim, amo, amas, ama, amamos, amais, amam é um paradigma da conjugação do indicativo presente dos verbos regulares da Língua Portuguesa terminados em ‘ar’, o uso de certas expressões e cálculos matemáticos são o paradigma para descrever e explicar a dinâmica de certos fenômenos naturais etc.
Uma comunidade científica caracteriza-se pela prática de uma especialidade científica, por uma formação teórica comum, pela circulação abundante de informação no interior do grupo e pela unanimidade de juízo em assuntos profissionais em torno de um paradigma. Em sentido particular, esse paradigma é um exemplo; O paradigma é, neste sentido, uma “concepção de mundo” que, pressupondo um “modo de ver” e de “praticar”, engloba um conjunto de teorias, instrumentos, conceitos e métodos de investigação. De certa forma, a dinâmica do paradigma kuhniano me faz lembrar a teoria dos Fatos sociais e da Cosnciência Coletiva da sociologia de Èmile Durkheim com e suas formas de pensar, sentir e agir sociais, coercitivas, gerais e exteriores. O paradigma indica à comunidade o que é interessante investigar, como levar o cabo essa investigação, impondo um sentido ao trabalho realizado pelos investigadores e limitando os aspectos considerados relevantes da investigação científica. A comunidade limita-se a resolver um conjunto de problemas que o paradigma lhe vai fornecendo, toda a investigação é realizada dentro e à luz do paradigma aceite por ela. O cientista não procura questionar ou investigar aspectos que extravasam o próprio paradigma, caso contrário não terá a atenção do grupo no qual está inserido, será excluído como um “louco”, ou como ignorante e ingênuo.
Deste modo, o paradigma que o cientista adquiriu durante a sua formação (seja na escola ou na universidade) fornece-lhe as regras do jogo, descreve-lhe as peças a utilizar e indica-lhe o caminho ou objetivo a atingir. Isto significa que as regras fornecidas pelo paradigma, não podem ser postas em causa, já que o paradigma é o sentido de toda a investigação e o próprio enigma a investigar não existiria sem ele. Esta crença exacerbada no paradigma demonstra-nos que o trabalho do cientista exprime uma adesão muito profunda ao grupo acadêmico no qual ele faz parte. Nesse caso, o aprendizado em ciência não apenas “liberta” a pessoa da ignorância como a faz também aderir a uma comunidade cheia de regras e controladora de suas práticas e pensamentos, enfim, como diria a sociologia de Durkheim, a uma sociedade.
Nesse contexto, nenhuma investigação de fenômenos poderá ser levada a cabo com sucesso na ausência do corpo de princípios teóricos e metodológicos (o paradigma) aceito pela academia e que permitem, inclusive, a seleção e a validação do que se observa! Aqui se nota um dos principais enganos da concepção clássica de ciência, que imagina ser possível fazer observações neutras da natureza. Nas concepções contemporâneas, reconhece-se que fatos e teorias estão em constante relação de interdependência, como que em “simbiose”. As teorias contribuindo para a seleção de fenômenos, classificação, concatenação, predição e explicação dos memos. De posse de um corpo de princípios teóricos e regras metodológicas aceitas socialmente( primeiro dentro do grupo acadêmico e depois amplamente pela sociedade), o cientista não precisa a cada momento reconstruir os fundamentos de seu campo de conhecimento, começando seus trbalhos de princípios básicos já dados (exteriores ao cientista) e justificando o significado e uso de cada conceito introduzido pela autoridade imposta pelo paradigma que o torna acadêmico. Lembrei-me nesse momento dos livros de Foucalt (“A história da Loucura”e “Vigiar e Punir”) nos quais é explicitado a história da formação do paradigma moderno da Razão e da Ciência intimamente relacionado ao desenvolvimento do paradigma da disciplina policial, psiquiátrica e do próprio conceito de Saúde de nossos corpos e mentes.
Khun operou um rude golpe na imagem da Ciência e da Racionalidade modernas consolidadas a partir do século XVIII. Inaugurou um discurso inovador, que privilegia os aspectos históricos e sociológicos na análise da prática científica, desvalorizando os aspectos lógio-metodológicos que ainda encontramos no discurso presente nos livros e apostilas do ensino dessa disciplina para o Ensino Médio.
Seus estudos nessa área apareceram publicados de modo mais amplo em seu livro de 1962, A Estrutura das Revoluções Científicas. Esse trabalho viria a exercer uma influência decisiva nos rumos da filosofia da ciência. Indico esse livro para a leitura.
Espero com esse texto ter apresentado novos caminhos para a reflexão acerca das relações entre a sociologia e as ciências exatas e da Ciência com a política. Ofereço-o a meus alunos esperando ter respondido aos questionamentos deles, especialmente a aluna Gabi. A história da Ciência leva-nos mais a Sociologia do que a Filosofia. Pensem nisso.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

O Soldado como um Amigo.


A leitura do “Meu Diário de Guerra” do ex-combatente da FEB, Sr. Flávio Villaça Guimarães, pode levar ao desapontamento o leitor comum e despertar nele uma série de novas curiosidades a respeito do fenômeno da guerra. Munido apenas do que nos é comumente apresentado sobre o tema, isto é, a guerra como um conjunto de armamentos, estratégias, combates, “heroísmo”, inimigos e mortes, a pessoa comum provavelmente se sentirá perdida por não encontrar na maioria das páginas escritas pelo soldado citado fatos dessa natureza. Em meio à compreensão dos fatos narrados e relatados por Villaça em seu ‘diário’, aparece outra face da ‘guerra’ que, ao lado dos combates e indiretamente relacionados com eles, pode não ser do conhecimento da maioria das pessoas interessadas em compreender esse fenômeno. Villaça realça em seu relato fatos vividos cotidianamente que, rigorosamente falando, não são exatamente o que costumamos imaginar a respeito da experiência militar de um soldado em uma guerra.

Logo no início do ‘diário’, é relatado o trânsito dos soldados para o embarque em um navio que os levaria para os combates na Itália. Ao invés da movimentação de homens rigorosamente em ordem, por meio de fileiras de combatentes em marcha, como seria presumível em nossa imaginação comum, Villaça nos narra uma outra espécie de acontecimento:

“Os ‘pracinhas’ misturados com os civis se acotovelavam mais parecendo formigueiro humano. Quando da entrada ou saída nas estações, era até hilariante, pois quando as portas se abriam o ‘empurra-empurra’ dos que queriam sair e dos que queriam entrar se tornou uma comédia.(...) Tínhamos que tirar o quepe e o cinturão erguendo-os ao ar para não os perdermos por ocasião da avalanche durante a entrada ou saída do trem. (...)

Uns ao chegarem à cidade iam logo se dirigindo para os bares a fim de tomarem um aperitivo. Toda aquela balbúrdia, que tinha um sabor de hilaridade, parecia um prenúncio de que, dali para frente, nossa vida iria mudar, e muito, isto é, desceu o pano do circo e o drama que iríamos viver estaria por começar.(...) Uns companheiros aguardavam as instruções, cabisbaixos, sentados sobre os já famosos “sacos A e B” (sacos nos quais os soldados carregavam suas roupas e outros utensílios de campanha). Outros, mais pensativos, agitados, andavam de um lado para o outro, dando a pensar que haviam perdido a fala, outros cantarolavam e assoviavam.”

Vemos nessas passagens uma cena inusitada de pessoas vivenciando um momento ímpar em suas vidas, recheado de emoções e comportamento dos mais diversos, trazendo à tona, por outro lado, a unicidade do ser humano comum/civil, que mora atrás da farda, reagindo a uma situação de estresse com as fraquezas e medos que essa situação sempre prevê. Esse quadro parece ser bem diverso daquele apresentado por meio da imagem comum que foi construída do militar: o soldado em todas as circunstâncias disciplinado, sisudo, compenetrado, frio e implacável. Em outra passagem do mesmo diário, ainda a respeito do embarque, é relatada a embriaguez de vários homens, inclusive de um sargento, como forma de suportar o estresse da véspera do embarque. Os relatos da viagem para a Europa são repletos de outras passagens que colaboram para fortalecer nosso argumento. Dessa forma, caberia aqui uma indagação a respeito de até que ponto o treinamento e a instrução militar transformam inteiramente o homem comum em um militar preparado para uma guerra, sem abrir brechas para o retorno do comportamento do homem civil. Que tipo de mudanças são esperadas nesses homens que passam pelo processo de treinamento militar e quais são de fato realizadas? Além das experiências típicas do front, quais outras são presentes na vida dos soldados em uma guerra?

Em outras passagens do ‘diário’, o soldado relatado por Villaça parece nos obrigar a construir outra imagem do combatente além daquela exaustivamente trabalhada no cinema ‘hollywoodiano’. Muitas vezes longe das explosões das bombas e do pipocar dos tiros, o pracinha brasileiro aparece muito mais envolvido em situações sociais não previstas nos combates, isto é, ainda como um homem de farda, porém nem sempre armado, obrigado ou disposto a atirar:

“No dia 17/07/44, ficamos ali aguardando ordens do Comando ‘negociando’ frutas com os moradores vizinhos, sem contar com o ‘câmbio’ de cigarretes com o vinho frisante desenterrado pelos camponeses; estes enterraram as garrafas de vinho nos seus terrenos a fim de preservá-las, uma vez que o local havia sido invadido pelos alemães. Como caímos nas graças dos italianos, fomos nababescamente serviços por aquela gostosa bebida fermentada (...)”.
“Tivemos a oportunidade de conversar com várias pessoas na cidade. Uma dessas conversas foi em uma ‘andada’ de bonde que fizemos junto com um italiano idoso que procurou puxar conversa conosco. Esse senhor pediu para que o acompanhássemos até a casa dele. Entramos e ali ficamos conversando por algum tempo. Logo apareceu uma garota de uns 18 anos, neta do velho, com uma bandeja nos oferecendo copos de vinho. O nome dela era Tina e ela teve seu marido levado pelos alemães. O velho trabalhava como carpinteiro para os americanos e o que ganhava mal dava para sustentá-los. Oferecemos cigarros para ele, pois era a única coisa que tínhamos em mãos, e eles foram muito bem recebidos pelo velho com um sorriso de contentamento.”

O contato do pracinha com a população local é narrado inúmeras vezes pelo soldado Villaça, nos levando a crer que foram muito freqüentes na Itália, mas não somente lá, e de extrema utilidade para a dinâmica da adaptação da tropa brasileira no “Teatro de Operações” e muito mais para a sobrevivência material e psicológica da população italiana, há muito desvalida de recursos gerais mínimos. Talvez aqui caiba uma indagação acerca das maneiras de contato realizadas entre os soldados e a população local, suas dinâmicas próprias e sua participação no sucesso da empresa militar brasileira, bem como na manutenção de situações sociais mínimas para a sobrevivência de grupos humanos que ali suportavam todas as privações, incluindo aí os soldados brasileiros. É possível que as relações civis com a população local, inclusive em festas, bailes e situações de confraternização e entretenimento (estas, também relatadas no ‘diário’), tenham não só ajudado a amenizar a dureza do front, mas também, e fundamentalmente, tenham participado ativamente (da mesma forma que os combates) da experiência militar dos praças durante a guerra.

Essa é uma leitura sugerida por Francisco César Ferraz (soldado brasileiro) quando dos intervalos entre uma ação e outra, ou até mesmo ocasionalmente, quando

“Os soldados das linhas de frente recebiam licenças dos comandantes para descansar da extenuante rotina de combate, o que faziam em cidades com maior infra-estrutura para recepção de milhares de homens ávidos por alguns pequenos confortos, como tomar banhos quentes, dormir em colchões e comer algo menos insosso que as rações de combate”.

Villaça, como “soldado observador”, participou de várias operações militares na Itália, servindo como peça militar fundamental localizada entre a Artilharia, a Infantaria e os ‘Postos de Comando’ aliados, sendo, inclusive, parabenizado por isso. Em algumas vezes, este soldado ficou muito próximo do inimigo, podendo até vê-lo em suas movimentações.

Na verdade, queremos dizer que seu relato também enfoca e traz à tona outros fatos enfrentados cotidianamente pelo pracinha brasileiro na Itália, os quais podem ter sido tão significativos na estruturação de sua experiência militar como os combates, embora possam ser ainda desconhecidos pela maioria dos brasileiros. Fatos como as relações de companheirismo construídas entre os soldados no front e que talvez tenham sido a melhor experiência de suas vidas nos campos de batalha; as adversidades da natureza, como o clima e a topografia, que testaram os limites humanos desses homens possivelmente mais do que as explosões e os tiros; a amizade que brotou do contato entre os soldados e a população local, que pode ter auxiliado para que algumas experiências sociais civis fossem mantidas e tenham ajudado na adequação, acomodação e resistência dessas pessoas em meio às situações terríveis de desagregação humana em uma guerra. Trata-se de facetas da guerra que provavelmente nasçam somente em um “Teatro de Operações” e que não são devidamente apreciadas pela produção de filmes de guerra, como o “Resgate do Soldado Ryan”. Ainda em outra passagem do “diário”, lemos o seguinte:

“Dia 13 (domingo) tivemos permissão para darmos uma esticada até Tarquinia. Saí com o Cabo Êbe e lá ficamos até às 17 horas. Assistimos a uma partida de futebol entre dois times da cidade”.
“Num canto da cidade havia um cartaz anunciando a projeção, no Cine Teatro Garrison, do filme “Cover Girl” (Modelos), estrelado pela Rita Hayworth. O cinema, que tinha capacidade para duas mil pessoas, estava superlotado, com expectadores de várias nacionalidades: soldados ingleses, canadenses, australianos, franceses, americanos, indianos, brasileiros, italianos e outros de outros cantos do mundo. Fizemos um “relax”, saindo de lá por volta de uma hora da manhã. No segundo dia de nossa estada em Florença, fui a um teatro que estava encenando Madame Butterfly, com o tenor Carlo Butti. Pagamos 150 liras (30 cruzeiros em nossa moeda). Começou às 20:30, terminando às 23:30hs.”
“Após darmos uma passeada no local, seguimos, eu e o Morais, para outro lugar onde diziam que havia iniciado um baile com jazz. Chegando lá me dirigi para uma janela que dava de frente para a rua. Encostada na janela encontrava-se uma garota com uns 16 anos, loura, clara, olhos azuis, muito bonitinha. Conversei com ela, que se chamava Mercedes. Convidei-a para dançar. Ela recusou dizendo que não sabia dançar. Ficamos então de conversas até o baile terminar. Mercedes me convidou para ir na casa dela. Lá conheci seus pais e um irmão mais novo. Era uma casa de gente simples, porém direitinha. Ofereceram-me uma xícara de chá com um pedaço de bolo. Despedi-me depois de algumas conversas e fui embora.”

Portanto, o ‘diário’ do Sr. Villaça mostra que a experiência de um soldado em uma guerra pode ser muito mais complexa do que supõe a maioria de nós. Se quisermos dimensionar com riqueza a experiência desses 25.000 homens enviados à Itália em 1944, talvez devamos começar a dar mais atenção a esses acontecimentos considerados periféricos em uma guerra, por não se resumirem aos combates e estratégias. Essas “micro-histórias” vividas pelos pracinhas e não apenas as “macro-histórias” das grandes e épicas batalhas, merecem ser conhecidas e analisadas com mais calma, para que possamos continuar a relatar a façanha da FEB e a descobrir novos fatos que nos auxiliem a sempre escrevê-la e reescrevê-la. Enfim, esses ‘pequenos’ relatos, como o diário do Villaça, nos trazem realidades recheadas de surpresas e do cotidiano, mostrando o que a guerra de fato pode fazer com os homens e como eles realmente a fizeram.

Marcelo Sampaio e Paulo Eduardo Teixeira.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Irmãos de Armas!




O trabalho do profissional que cuida do resgate da memória e da sua preservação não é reconhecido e valorizado como deveria em nosso país. Talvez por não ser bem compreendido em seu início pela maioria das pessoas, o relembrar épocas, acontecimentos, enfim, a passagem do tempo, pode tornar-se bastante inglório.

Afinal, vivemos em um país desacostumado a dar a devida importância as suas lembranças, deixando sempre em segundo plano a compreensão do passado em prol de uma vida focada apenas no tempo presente. Será que o nosso passado é tão feio, cheio de erros, frustrações e injustiças que é melhor o esquecermos? Será que ele é desinteressante? Penso que não.

Se nós aprendemos com nossos erros pessoais, por que não aprendemos também com nossos “erros” coletivos, fenômenos esses de outra ordem, mas com a mesma raiz? Na verdade, há sempre bons exemplos a seguir do ontem para o hoje. Infelizmente, hoje somente os profissionais da História defendem essa postura, deixada de lado por boa parte de nossos meios de comunicação. Na contramão do que faz a sociedade brasileira, os professores de História ainda defendem a nossa memória, seja ela produto de nossa história remota ou recente. Esses professores afirmam-na, não por uma questão corporativa (a defesa de sua profissão), mas por acreditarem serem os únicos porta vozes de pessoas que talvez nunca pudessem falar de outra maneira. Ensinando-nos que devemos ainda nos espantar e também nos encantar após alguns anos passados, os historiadores são especialistas em dar voz aos esquecidos, isto é, àqueles que desapareceram do horizonte da história. Afirmar a importância da história da FEB (Força Expedicionária Brasileira) se insere nesse contexto descrito acima, especialmente quando falamos da memória de seus soldados rasos, os “pracinhas”. Apesar de muito já ter sido produzido sobre a memória da FEB, pouco foi escrito sobre os soldados. Será possível encontrarmos uma outra forma de contarmos essa história? Pensamos que a única forma de mudarmos esse estado de coisas é darmos voz aos soldados publicando seus relatos de experiência. Dar voz àqueles que só apareceram até agora na literatura como tropa, isto é, como um conjunto de pessoas sem identidades pessoais, é oferecer ao público talvez uma outra 2ª Guerra Mundial, uma outra FEB um outro Brasil nos anos 40. Quem sabe? Porém, se esses soldados foram realmente heróis, e de fato foram, por que ainda pouco se fala e se escreve a respeito deles fora do Exército Brasileiro? Por que ainda são esquecidos pela maioria de nós? De fato, ainda não decidimos dar voz e eles. Cabe aqui uma breve reflexão a respeito.

Nos EUA e na Europa os veteranos da Segunda Guerra são freqüentemente lembrados e celebrados seja na literatura, no cinema ou em inúmeros eventos cívicos e monumentos. Hollyood já teve no cinema de guerra suas maiores bilheterias. No Brasil, porém, há um profundo silêncio sobre nossa participação nesse grande conflito, apesar de o país ter sido o único da América Latina a participar efetivamente dos combates. Qual será a razão, ou as razões, desse esquecimento por parte dos brasileiros? É fato que aqui em nosso país temos um tratamento pouco respeitoso com nossos ex-combatentes, especialmente aos de baixa patente militar (chamados “carinhosamente” de pracinhas). Estes, após o fim das comemorações em 1945, tiveram uma vida dura de indiferença com relação as suas histórias pessoais e sofrimentos. Como podemos explicar isso? Cabe ao profissional de História cavoucar nos montes de entulhos deixados pelo tempo (e pelo desinteresse da sociedade) fatores que possam explicar essa situação.

De fato, a experiência da Grande Guerra não ecoou na sociedade brasileira como ocorreu no EUA e Europa. O impacto social do retorno dos veteranos brasileiros não teve a mesma relevância positiva, ou negativa, quando comparado ao que aconteceu em outras sociedades dessa época e que se envolveram no conflito. A lembrança da guerra em nosso país é quase que somente preservada pelos veteranos e suas família, pelos aficionados no assunto e pelas comemorações oficiais das Forças Armadas e prefeituras de pequenas cidades, essas sempre assistidas por um público de poucas pessoas. Essa é uma indiferença que se torna inexplicável quando lembramos que os soldados brasileiros foram cidadãos que colocaram suas vidas em risco com a certeza de que defendiam seu país, da mesma forma que o fizeram os norte-americanos, ingleses, canadenses etc. Foram mobilizados 25.000 cidadãos dos quatro cantos do Brasil para a formação de uma divisão de combate (a FEB), entre eles lavradores, comerciantes, operários, professores, estudantes, profissionais liberais, que abandonaram suas respectivas carreiras e vidas, para atuarem além-mar, na certeza de defenderem maneiras de pensar, sentir e agir de seu povo. Penso que, independentemente do que ocorreu nos combates, somente o abandono de suas famílias para a defesa de algo considerado sagrado já foi um ato que mereceria a lembrança e a celebração de muitos por aqui. Aliás, muitos desses soldados foram voluntários e muitos não voltaram.

A indiferença brasileira talvez possa ser explicada por meio de alguns números: os EUA mobilizaram 16 milhões de combatentes durante a Guerra Mundial e o Brasil apenas 25.000. Questões geográficas também podem ajudar a explicar a situação em questão: a Europa foi diretamente afetada como palco da guerra e, em nosso caso, enviamos nossos homens ao além-mar. Nesse caso, ao contrário do Brasil, os europeus foram um povo fortemente afetado pela guerra, não havendo família desse lugar que não tivesse algum membro ou parente participado do conflito. No nosso caso, são poucos os veteranos em nosso meio, considerando-se a população total do País. Nos EUA, por exemplo, pode-se ter, eventualmente, um ex-combatente como vizinho e, não é difícil, tê-lo sob o mesmo teto. Aqui no Brasil, porém, os encontramos em menor número espalhados pelo território. Talvez essa realidade seja um fator explicativo para a nossa falta de atenção com os ex-combatentes.

Entretanto, pensamos que há outros fatores que também merecem a nossa análise devido ao poder elucidativo que podem ter na explicação da nossa indiferença com a FEB e seus ex-combatentes. A Força Expedicionária Brasileira trouxe da Europa duas espécies de veteranos: os que seguiram na corporação como oficiais, beneficiando-se de suas experiências na Itália e participando posteriormente de articulações políticas dentro e fora dos quartéis, e aqueles que seriam desligados do Exército e rapidamente enviados para casa, isto é, os ‘praças’. Estes últimos foram também rapidamente esquecidos pelo governo que trabalhou com o objetivo político consciente de alargar essa indiferença para o resto da sociedade brasileira.

Preocupado com os desdobramentos políticos da presença no País de uma tropa que havia combatido e ajudado a derrotar duas ditaduras na Europa, Getúlio Vargas (líder de uma ditadura desgastada) ordenou a imediata desmobilização da divisão expedicionária. Temendo talvez o poder que uma tropa moderna, com experiência real de guerra, poderia oferecer a um governo frágil frente a interesses militares contrários, ou mesmo temendo que um imenso contingente militar de elite feito de elementos do povo (com armamentos e treinamento dos EUA, isto é, da melhor escola militar do planeta) significasse uma oposição social a seu governo, enfim, Vargas, que outrora havia ajudado a criar a FEB, agora dava o pontapé inicial para o esquecimento de seus membros mais corajosos e sofridos. Como conseqüência dessa ação, o governo apenas pagou um soldo correspondente aos dias de participação dos soldados na guerra e a passagem de volta para suas respectivas cidades para depois esquece-los logo em seguida. Em uma situação como essas, na qual a maioria desses homens precisava ter a garantia do retorno as suas atividades profissionais e familiares, alguns desses até mutilados e com neuroses de guerra, nossos ex-combatentes ficaram entregues a própria sorte.

Portanto, na defesa de interesses “nacionais”, nosso governo federal criou uma tropa especial capaz de acompanhar o maior exército do mundo em uma guerra moderna, isso tudo em território estrangeiro extremante hostil (montanhoso e com inimigos poderosos) tendo como base os cidadãos mais simples que sofreram uma abrupta e penosa transformação para se tornarem soldados especializados. Posteriormente, esse mesmo governo a desmobiliza após meses de combate e três dias de desfile sem uma política de valorização de seus veteranos. Para qualquer observador comum, haveria uma incongruência nessas duas atitudes. Porém, quando o assunto em questão são as artimanhas do uso do poder no Brasil pelos grupos sociais dominantes e seus representantes, tudo fica inteligível e a incompreensão desaparece. Utilizar nosso povo como ferramenta humana para a realização de projetos políticos, nos quais esse mesmo povo não participou da construção, é um fenômeno comum em nossa história.

Infelizmente o que aconteceu com os pracinhas da FEB foi mais um exemplo disso. O sonho nacionalista de Vargas foi por água abaixo e os pracinhas “pagaram o pato” do esquecimento. O Exército não teve atitude muito diferente: manteve apenas alguns contingentes expedicionários de baixa patente na ativa (tenentes, capitães e majores) para o treinamento de tropas nas escolas militares. Somente no início dos anos oitenta do século passado, os pracinhas começariam a receber uma pensão como direito pago pelo governo. Atualmente são lembrados apenas nas poucas comemorações militares e municipais.

Voltando a falar da realização de projetos políticos no Brasil, nos quais o povo não participa, a FEB também participou das estratégias traçadas pelos grupos sociais dominantes para chegarem e se manterem no poder. A oficialidade média da FEB, composta por majores e tenentes-coronéis integrantes do Estado Maior e do Serviço de Inteligência do corpo expedicionário (pessoas que ficavam há quilômetros de distância dos combates, comandando as operações) alavancaram suas carreiras de forma meteórica após o conflito. Fizeram isso por convicção pessoal e por acreditarem em uma missão: que somente o comando das Forças Armadas poderia colocar o Brasil no caminho do progresso econômico e social. Como em outros momentos de nossa história, novamente o Exército queria tomar a frente nas decisões nacionais. Os ex-febianos de alta patente militar ajudaram a eleger Eurico Gaspar Dutra (ministro da guerra de Vargas) como presidente e, após a eleição de Vargas, ficaram bem mais próximos do poder federal. A convivência com o US Army na Itália criou nesse grupo os ideais democráticos (que tanto foram utilizados na derrubada da ditadura de Vargas), ajudou a construir para esses homens um plano nacional-desenvolvimentista com ênfase na participação do capital externo e reforçou o anticomunismo em seus corações. Coincidência ou conseqüência, essa mesma oficialidade egressa da FEB participaria ativamente (alguns no comando) do golpe militar de 1964 (sobre o governo João Goulart), que instituiria uma ditadura militar de “direita” de 21 anos de duração. Portanto, a integração social dos veteranos da FEB se deu de duas formas distintas: uma foi o esquecimento coletivo de seus pracinhas iniciado por Vargas, e a outra foi a tomada do poder político no Brasil por meio de sua oficialidade anos após o suicídio desse mesmo presidente.

A chegada ao poder da oficialidade egressa da FEB poderia ter sido o momento da redenção de seus pracinhas que, esquecidos até aquele momento, teriam agora na ditadura militar seus velhos companheiros de armas no comando. Porém, esse companheirismo de farda não suportou o passar dos anos e as mudanças de planos do comando de nosso Exército de 1945 até 1964. Durante o regime militar, nada foi feito efetivamente para melhorar a condição social de nossos ex-combatentes. Tudo o que nosso Governo Militar fez pelos soldados febianos foi lembrar deles por meio da publicação de inúmeros livros a respeito de nossa campanha na 2ª Guerra Mundial.

Esse fato, mesmo sendo louvável, pois tais publicações tocavam no assunto da preservação da memória dos combatentes, não garantiu o esperado e merecido reconhecimento público dos praças. Divulgando uma história exageradamente gloriosa e heróica de seus ex-combatentes (portanto distorcida) com o objetivo indireto engrandecer a história do próprio Exército e de seus comandantes, nossos generais e coronéis ajudaram a consolidar uma falsa imagem da FEB. Para essa literatura, nossa cobra só fumou na Itália por causa das qualidades excepcionais de seus comandantes que, com muita coragem e espírito patriótico, foram os maiores responsáveis pelas vitórias brasileiras. Portanto, sem a presença onipresente e onipotente de nossos “Estado-Maiores”, segundo essas publicações da Bibliex não teríamos sido heróis na guerra. Com a divulgação dessas “heróicas” histórias, o Exército envolveu a memória dos pracinhas em um amontoado de fatos mal contados para destacar a atuação dos seus comandantes na vitória final dos conflitos. Na Europa nossos soldados ficavam a frente do comando e na literatura do Exército os mesmos ficaram atrás dos grandes ícones de alta patente.

O regime de 1964 gerou um péssimo relacionamento entre civis e militares, principalmente por causa dos julgamentos sumários, perseguições e prisões a que nosso povo foi alvo por parte de “nossas” Forças Armadas. A partir disso, foi construída uma justificável falta de identificação entre o cidadão comum e o militar no Brasil, pois esse terrorismo oficial foi terrível e traumático. Após, inclusive, a ameaças de mortes injustificadas durante esse período, ficou difícil para o cidadão comum se identificar com os valores específicos do Exército. Nossos intelectuais, responsáveis por pesquisar e socializar a história de nosso país, mas também perseguidos pelo regime, se perguntavam nesse momento: para que lembrar a história de uma corporação que, ao invés de proteger seu povo e defender as instituições democráticas está mantendo-os em “ordem” por meio da força, usurpando a República? Esse fato levou ao esquecimento acadêmico do Exército e de sua história, incluindo aí um de seus capítulos mais recentes: a FEB. Entretanto, apesar dessa indiferença acadêmica plenamente explicável, nossa historiografia não deixou totalmente de produzir material sobre esse tema.

Interessada em criticar o regime militar de 1964, nossa historiografia buscou desclassificar de várias formas os comandantes da FEB jogando-os junto com seus praças no domínio do insignificante. Nesse contexto, destaca-se a interpretação marxista que vê exclusivamente o Exército como o defensor histórico do Estado e da sociedade capitalista, garantindo a manutenção da ordem interna e a conquista externa de mercados por meio do uso da força (história ensinada nas escolas). Essa postura docente ensina a memória da FEB como um grande exemplo da exploração do povo (convocado em todo o Brasil e mal treinado para ser jogado em uma guerra com pouca ou nenhuma vinculação com a história de sua vida) feita por um Estado a serviço do capitalismo e a serviço da política e dos interesses imperialistas dos EUA. Acrescente-se que, nós professores ainda defendíamos que a FEB pouco havia participado do conflito na Europa, em campanhas insignificantes e sem importância para os destinos do conflito quando comparadas ao “Dia D” ao “Cerco a Stanligrado”. Pensávamos estar a serviço de uma ciência crítica que promovia o resgate da visão marxista da história, mas, na verdade, estávamos ajudando a afundar ainda mais nos entulhos do tempo a memória dos cidadãos ex-combatentes (pessoas autenticamente do povo) vangloriando, por outro lado, os feitos heróicos dos soldados do exército vermelho. Atualmente, nossa opinião é bem diversa dessa que foi nossa postura no passado, influenciada por professores que pouco investigaram ou analisaram a FEB sob a ótica de seus combatentes ou sobre o ponto de vista do resgate de suas memórias como fonte de reinterpretação da história do protagonismo de nosso povo e de seus dramas. Infelizmente fomos educados por pessoas que pensavam estudar os anos 40 no Brasil, mas que nunca deixaram os meados dos anos 60. Pensamos que temos agora uma dívida a pagar para essa gente simples que foi colocar suas vidas em risco em nome de um país e que tiveram sua história muito mal contada até hoje. Precisamos deixá-los falar.

Para ouvir as vozes dos esquecidos, cabe ao profissional de História nadar contra a maré, cavoucando nos montes de entulhos deixados pelo tempo (e pelo desinteresse da sociedade e, às vezes até mesmo das famílias), e no lixo produzido pela “contra-informação” acadêmica e militar, registros e relatos de acontecimentos que mereçam atenção e forneçam aprendizado. É preciso ir para o passado e, embaixo de várias camadas do tempo, achar o discurso das pessoas simples que, apesar de terem passado por inúmeras provações e perigos e por todas as brutalidades e mutilações, enfim, por todos os traumas de uma guerra, conseguiram fazer parte de uma tropa de elite muito acima das capacidades militares, psicológicas, físicas do brasileiro comum dos anos 40. Tudo isso por acreditarem que seriam úteis para a defesa de um país que há muito tempo não lhes dá a devida importância. Se nós sempre torcemos e nos emocionamos com nossos esportistas que também acreditam defender o nosso país, mas sem colocarem em risco suas vidas, não será difícil dar valor ao registro histórico dos ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial. Basta indagar: Onde estão nossos “heróis de Guerra”? Infelizmente a esmagadora maioria deles já não está entre nós, só restando mesmo o contato com seus “diários de guerra”, a lembrança das famílias e a vontade dos historiadores em transformar tudo isso em material rico em memória.

Ombros Armas!


Após 64 anos da participação do Brasil em uma Guerra Mundial (1945 a 2009), ainda não há consenso sobre os motivos exatos da entrada de nosso país nesse conflito e sobre as suas várias conseqüências e significações. Aliado a esse fato, há o nosso esquecimento com relação à memória dos nossos pracinhas, cidadãos diretamente envolvidos nesse acontecimento histórico. Entretanto, nossos ex-combatentes vêm resistindo bravamente à indiferença como resistiram nos tempos das granadas e das ‘lurdinhas’ alemãs em 1944 e 45. Alheios à dinâmica própria da luta de classes e aos artifícios do poder (aliás, causa provável do esquecimento de suas memórias), esses cidadãos continuam firmes na defesa de sua história que, na verdade, se confunde com um momento muito significativo da história de nosso país. Na tentativa de ajudá-los nessa campanha, proponho uma breve viagem no tempo para resgatarmos o contexto histórico no qual a FEB foi criada, uma época promissora e dramática vivida pelo Brasil e pelo mundo. Pretendemos com isso fazer apontamentos, esclarecer algumas dúvidas e dar a nossa contribuição para o polêmico debate sobre a participação brasileira nesse conflito mundial.

A participação do Brasil na 2ª Guerra, lutando ao lado do Exército norte-americano contra as forças armadas alemãs e italianas, ocorreu em um complicado contexto diplomático, político e militar. Vejam a seguir o que quero dizer.
Por volta dos nos anos 30, o governo dos EUA preocupava-se com a segurança política e militar do continente americano. Roosevelt, junto com seus conselheiros, nutriam um medo de o nazi-fascismo atrair os governos latino-americanos para a órbita de seus interesses. Segundo os norte-americanos, isso seria feito através da influência do modelo de desenvolvimento econômico e político proposto pela Alemanha: totalitarismo, industrialização e desenvolvimento militar como bases do progresso nacional. As décadas de 30 e 40 foram momentos em que o capitalismo foi claramente monopolista e imperialista e as potências mundiais tinham a geopolítica como elemento de supra-importância para as decisões governamentais. Nesse contexto, a América Latina, e o Brasil em especial, chamaram atenção dos norte-americanos e o nosso país entrou profundamente na pauta das discussões e projetos de mundo ianques.

O Brasil em meados dos anos 30 tinha significativa relação comercial com a Alemanha e a Itália por meio da negociação e aquisição de armamentos para o Exército nacional e de submarinos para a nossa Marinha. A população brasileira era constituída, principalmente em sua região mais populosa (o sudeste), de um grande contingente de imigrantes italianos, japoneses e alemães, nacionalidades constituintes do futuro Eixo. Além disso, o Estado Novo getulista, regime ditatorial, era assemelhado com os governos nazi-fascistas europeus. Portanto, para a visão ianque a “modernização do Brasil”, colocada em prática desde a “revolução de 30”, seguia por caminhos preocupantes. Nossa indústria de base, a “menina dos olhos” de Vargas, ainda poderia ser reforçada com a implantação de tecnologia “Krupp” que vinha da Alemanha. Portanto, esses fatos já eram suficientes para gerar uma grande dor de cabeça nos estrategistas geopolíticos ianques. Nessa conjuntura, o Brasil, sua sociedade e seu governo se tornaram uma preocupação diária para os EUA.

Roosevelt ainda tinha outra espécie de preocupação com o território tupiniquim: a inserção do Brasil em uma geografia mundial de guerra. No final dos anos 30, quase todo mundo já sabia da possibilidade de uma guerra mundial devido à corrida armamentista iniciada há tempo pelas potências econômicas da época. Nesse provável cenário bélico, em um primeiro momento em território europeu e posteriormente em território africano, a proteção da América do Sul tornava-se importante para evitar um futuro desembarque do Eixo por aqui. Era preciso construir aqui um forte foco de resistência a uma invasão inimiga. Nessa visão, os EUA encaravam o controle do Nordeste brasileiro como vital para o domínio militar Aliado do Atlântico Sul, pois acreditavam ser ali o ponto mais provável de uma invasão alemã já que se tratava do local americano mais próximo da África do Norte. Não era nenhum absurdo prever nessa época que Natal poderia ser utilizada como base para uma força européia inimiga para transportar tropas para a África já que governos como os da Argentina e do Chile também mostravam clara simpatia pelo nazi-fascismo. Portanto, o governo norte-americano acreditava que Natal deveria ser utilizada pelos Aliados como um ponto avançado de resistência à formação de um bloco de países sob a influência geopolítica alemã e posteriormente para transportar tropas, materiais bélicos e suprimentos Aliados para a África e dela para a Europa em um cenário de guerra mundial contra o Eixo.

Do ponto de vista ianque, a questão brasileira era colocada da seguinte forma: dominamos militarmente o Nordeste do Brasil para incluirmos a América do Sul no esforço de guerra (caso não haja a autorização brasileira) ou negociaremos a ocupação por meio e um plano de armamento das forças armadas brasileiras para que ela e nós norte-americanos façamos essa proteção? De uma forma ou de outra, a única certeza que o governo Roosevelt tinha no início dos anos 40 era que o Brasil, um país de grande litoral atlântico, precisava ser incorporado ao esforço geopolítico norte-americano de resistência ao nazi-fascismo tendo seu território incluído no projeto militar de proteção da América Latina.

Frente a esse cenário complexo, o governo Vargas possuía seus próprios interesses e pontos de vista. Uma das posições brasileiras era e de que a presença de forças militares estrangeiras no Nordeste deveria ser negociada. A visão estratégica do governo getulista propunha projetos ambiciosos: aproveitar essa conjuntura para poder ter a oportunidade de construir um ‘país moderno’. Para tanto, era preciso modernizar e reequipar as forças armadas para poder obter definitivamente o apoio dessa instituição ao seu governo. Aceitando a parceria militar norte-americana, potência bélica mundial, Vargas concretizaria um de seus desejos (compartilhado por parceiros militares) de ver o Exército brasileiro equipado com o que havia de melhor em armamentos, treinamento e logística.

Um outro desejo getulista era ver o Brasil ser tornar uma potência regional latino-americana, revertendo no cenário mundial sua tradicional posição de mero fornecedor de matéria-prima e consumidor de produtos industrializados, transformando-se em um “país adulto” e moderno. Nesse contexto, possuir apenas um potente exército não bastava para a consolidação de seu projeto econômico e para reversão política brasileira na América Latina e no Mundo.

Após uma série de modificações modernizantes realizadas na economia, Vargas e seu governo ditatorial viam no desenvolvimento [industrialização pesada nacional] um ponto pacífico para iniciar essa virada de mesa brasileira. Fornecendo o território nacional como base de esforço de guerra ianque, o governo brasileiro facilitaria a transferência de tecnologia norte-americana ao nosso jovem parque industrial.

Portanto, interessado no estabelecimento de uma condição que capacitasse o nosso país como líder da América do Sul, projetando seu poder numa maior área de influência, Vargas se aproximou definitivamente da posição de Roosevelt acabando com o dilema ianque. A escolha foi pela via da negociação e da diplomacia evitando assim uma possível invasão estrangeira do território brasileiro fosse ela norte-americana ou alemã. Nesse contexto, a autorização para a ocupação militar americana em território nacional não foi concedida rapidamente e se desenvolveu gradativamente por meio de vários acordos assinados entre os EUA e o Brasil entre os anos de 1940 e 1942.

O torpedeamento de navios cargueiros brasileiros por submarinos alemães também ajudou a apressar a concretização desses acordos iniciando a cooperação entre a marinha brasileira e a americana no patrulhamento do Atlântico Sul. Entretanto, esse fato, que muitos pensam ter sido o principal fator de o Brasil ter entrado na guerra a de ter formado a FEB, foi apenas uma das peças de um complicado quebra-cabeça que continha uma série de outros fatos e fatores determinantes.

Em 1942, depois de reuniões e acordos com a presença de líderes ianques e brasileiros, ficou acertado que o governo brasileiro aceitaria a ocupação ianque em Natal em troca de uma generosa ajuda material para as nossas forças armadas; do suporte tecnológico e financeiro para a construção de uma usina siderúrgica e do fornecimento de matérias-primas brasileiras para o esforço de guerra Aliado. Com isso, Roosevelt finalmente concretiza seu projeto de proteção da América Latina colocando Natal como peça estratégica no plano de guerra Aliado de atacar o norte da África e dominar o Mediterrâneo para atrair os alemães para o Sul da Europa. Dessa forma, os estrategistas militares Aliados pretendiam forçar o “esvaziando” alemão do norte europeu para uma futura invasão na França (O Dia D).

Vargas, entretanto, ainda não havia completado seu projeto de transformar o Brasil em líder geopolítico. Na visão de seu governo não bastava o fortalecimento industrial e militar do país para manter a segurança interna e lançar o Brasil lançá-lo em uma posição política de destaque no mundo. Era preciso participar efetivamente da Guerra na Europa enviando um contingente militar para combater o Eixo no além mar. Em uma conversa demorada com Roosevelt, Vargas acertou com os EUA uma última cooperação: a formação de um corpo especial do exército brasileiro, nos moldes do moderno US Army, para ajudar no combate Aliado contra as forças alemãs. Nascia aí, como última peça a encaixar no ‘quebra-cabeça’ diplomático e militar entre o Brasil e os EUA, a saber, o projeto da FEB.

Na visão de Vargas e de seus líderes militares, enviar brasileiros para a 2ª Guerra Mundial poderia, além do equipamento e treinamento modernos, proporcionar ao Exército a experiência única dos combates reais e de tudo que cerca a organização, planejamento e efetivação de uma guerra de fato. Formando um núcleo de veteranos em uma guerra moderna, Vargas poderia com ele fornecer treinamento único, moderno e experimentado ao grosso do Exército no pós-guerra. Portanto, a visão de nosso presidente ia muito além do desejo apenas de obter uma posição de maior relevância internacional para o Brasil.

Fica claro, após a decisão de participar diretamente dos combates terrestres mundiais, que Vargas pensava um Brasil industrializado, moderno e forte militarmente para o domínio geopolítico da América do Sul. A FEB deveria coroar esse projeto a qualquer custo! A mobilização do Exército começou com o aumento do efetivo, com a sua modernização para defender adequadamente o país e a formação de um contingente especial para combater além mar. A FEB começa então a ser organizada com a convocação de centenas de milhares de jovens reservistas em quase todo território nacional. Alheios a praticamente todos esses fatos, lavradores, trabalhadores urbanos, comerciantes etc., vão à guerra, pois, afinal de contas, “torpedearam nossos navios no litoral brasileiro!”. Começava aí a história pessoal de nossos “heróis” de guerra que hoje jaz esquecida da maioria dos brasileiros. Entre eles, o Sr. Flávio Villaça Guimarães.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Avante Homens!


Na Itália, em uma manhã de primavera em 1945, soldados brasileiros compartilham um momento de tensão dentro de seus pequenos abrigos de proteção contra granadas. Uns reliam cartas recebidas de suas famílias juntamente com fotos de seus entes queridos, outros rezavam, outros ainda contavam piadas e emitiam gracejos que não emplacavam na tentativa de animar seus companheiros e amenizar o nervosismo. Alguns, principalmente os tenentes líderes de pelotão, checavam armas, conferiam munição e recebiam informações importantes pelo telefone de campanha. Do outro lado da linha telefônica estava o “soldado observador”. Essa cena relatada de uma maneira resumida retrata uma situação corriqueira da vida dos combatentes brasileiros na Segunda Guerra Mundial: a espera para o “golpe de mão” da patrulha. Em momentos como esse, eram vários os combatentes brasileiros envolvidos na ação que contava não apenas com os grupos de combate feitos de soldados, cabos, sargentos e tenentes, mas também do trabalho sempre importante dos “P.O.”( Postos de Observação ).

A FEB (Força Expedicionária Brasileira) foi enviada para fazer a guerra em um local montanhoso repleto de pequenas cidades e vilas. O inimigo quase sempre a aguardava guarnecido de morteiros e metralhadoras, se aproveitando dos acidentes do relevo e dos escombros das cidades bombardeadas para atuar com o elemento surpresa a seu favor. Os soldados alemães e italianos eram experientes em combate e sabiam se esconder muito bem. Aliás, em uma guerra, um bom esconderijo pode ser tão importante como uma arma carregada. Na condição de alvo do elemento surpresa, um grupo de soldados brasileiros não teria a mínima chance de sair ileso de um ataque bem planejado e executado pelo inimigo. Era preciso avisar com antecedência os brasileiros que no terreno diante da patrulha havia inimigos instalados e a espreita. Essa função estava sob a responsabilidade dos “soldados observadores”.
No cume de uma elevação ou no alto de um prédio, esses soldados especializados, munidos de binóculos, conseguiam avistar uma tropa inimiga ocupando previamente um terreno. No contexto da guerra na Itália, a identificação das posições inimigas salvou muitas vidas brasileiras. Portanto, nossa tropa nunca esteve sozinha no campo de batalha. Cabia aos “soldados observadores” o levantamento de coordenadas e informações topográficas que fariam parte dos planos de movimentação de nosso exército.

Muitas vezes era preciso arriscar a vida para informar a tropa sobre as condições do ataque e o “soldado observador” fazia esse trabalho com muita eficiência. Nesse contexto, cabia aos sempre jovens oficiais o comando de seus grupos de combate e aos soldados observadores a informação precisa para que tal trabalho se concretizasse com chances de sucesso, mesmo que para isso a observação fosse feita a menos de um km do inimigo.

A guerra na qual participou a FEB foi feita na maioria dos casos de patrulhas em combates urbanos e de montanha, considerados os mais difíceis de se praticar até hoje. A geografia da península italiana, ao contrário de outras frentes da guerra na Europa, induzia o emprego de pelotões de fuzileiros para ocuparem posições isoladas e distantes, muitas vezes em setores inóspitos da linha de frente, operações que poderiam acontecer por dias, semanas e meses. Portanto, a guerra que os brasileiros enfrentaram foi mais de capitães, tenentes, sargentos e soldados, com embates decididos à base de metralhadora, morteiros, bazucas e granadas de mão, ou seja, em situações de alto risco de morte. Nesse contexto, o sucesso das operações estava mais de 50% sob responsabilidade dos soldados observadores que, em meio as batalhas, orientavam os tiros da artilharia sobre o inimigo para salvar as patrulhas amigas dos sufocos do combate, informando nossos comandantes a respeito da situação dos brasileiros na batalha em desenvolvimento e até solicitando o cessar fogo para a atuação dos padioleiros após uma bandeira branca desfraldada e devidamente identificada pelo P.O.. Capitães e tenentes e seus subalternos executavam suas missões por meio da confiança nos observadores com os quais sempre lutavam lado a lado.

Apesar da importância do trabalho dos observadores, alguns oficiais brasileiros, talvez por excesso de bravura, teimavam em desconsiderá-los em momentos cruciais de suas ações. Em atitudes irrefletidas como essa, o risco de morte aumentava mesmo no cumprimento das tarefas mais simples. Certa vez um tenente brasileiro saiu com seu pelotão para uma patrulha noturna, momento em que os francos atiradores alemães preferiam agir, e ao final do percurso contrariou as informações dos observadores e o bom senso e, por “valentia”, entrou desprotegido em uma vila juntamente com seis soldados sob seu comando. Cercado por tropas inimigas, morreu juntamente com alguns de seus comandados.

Em meio aos vários fatos ocorridos na passagem da FEB na guerra na Itália, seja nas montanhas e vilas medievais, entre cargas de morteiros e espocar dos fuzis e metralhadoras, além do valor de nossos soldados de infantaria da linha de frente, armados de fuzis e metralhadoras, houve a atuação eficiente dos observadores que munidos apenas de binóculos, bússolas e telefones participaram ativamente dos sucessos da FEB.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

A violência como tema dos vestibulares


A violência tomou proporções tão drásticas em nosso país que não há mais pessoas indiferentes aos seguintes assuntos: a pena de morte e a maioridade penal. De uma ponta a outra da sociedade, os debates esquentam o momento de reflexão que estamos vivendo atualmente. A indignação, a desesperança e o medo tomam conta do espírito dos brasileiros e apontam para um norte de ações radicais e de reformas legislativas. Frente ao infanticídio, somos quase todos levados ao horror e forçados (por uma força que vem dos sentimentos a flôr-da-pele) a nos questionarmos: como saímos dessa crise?

De fato não há como negar que estamos vivendo uma crise no universo da moral, da ética, da cultura, isto é, como diria Durkheim, “em nossas maneiras de pensar, sentir e agir coletivas”. Seguindo o pensamento do referido pensador, poderíamos dizer que a sociedade brasileira está reproduzindo há algum tempo uma consciência coletiva mórbida, isto é, doente e autodestrutiva. É preciso encontrar os indícios que nos levem aos lugares onde está instalada essa “patologia social”.

Perceber que o capitalismo contemporâneo é pulsional e infantilizante, e que produz uma educação e uma cultura para qual a atividade do pensamento é próxima a zero, pode ser o início de nossa busca. Reconhecer que, aliado a esse fato, nossos adolescentes estão impulsivos e ousados a ponto de realizarem malabarismos sociais que vão das comunidades do Orkut até a formação de quadrilhas criminosas, nos aponta um caminho. Apresso-me em afirmar que não acredito no aumento da punição como forma de equilibrar a sociedade. Precisamos abandonar a superfície dos fenômenos para chegarmos a essencial: o fenômeno da alienação.

Marx definiu a alienação no capitalismo como um estranhamento histórico entre o ser humano e o mundo produzido por ele. Como se a sociedade, e tudo que ela oferecesse a nossas vidas, se tornasse um ser estranho (com uma vida própria e independente de seus criadores) e se voltasse contra nós para nos explorar e pressionar. A alienação é o que vemos muitas vezes na vida de nossos adolescentes, repleta de oportunidades negadas e de uma contínua exclusão. Excluídos da família, da escola, do lazer, da profissionalização, do trabalho, enfim, da sociedade. Negamos todas oportunidades de “formação” a eles e os deixamos à mercê da miséria de um mundo alienado (‘desrealizado’) no qual, por não conseguirem a realização de suas vidas nos tecidos sociais “normais”, buscam uma realização fantástica no crime, no consumismo e na banalização da violência. Precisamos entender que nossos futuros cidadãos não querem somente comida, mas diversão e...nem pensem em religião.

As relações sociais alienadas (e alienantes) permeiam toda a sociedade e tem em nossas várias instituições sua fonte de reprodução e, por mais incrível que pareça, a Escola é uma dessas. Fazer o adolescente se sentir estranhado com seu próprio trabalho e, conseqüentemente, com seus produtos, é a especialidade do Ensino há algum tempo. Incluo aqui também, principalmente, as escolas da rede particular de ensino: o ensino pré-vestibular. Nesse caso, (lembremos novamente de Durkheim) a Escola não está cumprindo o papel que a sociedade espera dessa instituição, pois, não está “fixando de antemão na alma do jovem, certos sentimentos sociais reclamados pela vida coletiva”, a saber, a tolerância e a responsabilidade e a sociabilidade. Tentarei exemplificar o que digo a seguir, analisando as práticas de ensino de História de nossas escolas (particulares e públicas).

A alienação está prevista nos projetos educacionais escolares: pretender com livros didáticos (apostilas) abarcar todo o conteúdo da disciplina História, alinhando-o em uma seriação progressiva de acontecimentos repletos de “heróis” e da “memória da nação”, isso tudo bem distante do cotidiano dos alunos. A Antiguidade, Idade Média, Moderna e Contemporânea, ou mesmo, Brasil Colônia, Império e República, dessa forma expostos e “transmitidos”, desconsidera a vivência dos alunos, seus problemas e anseios. Dessa forma a História (e a história) se torna incompreensível e desinteressante para eles. Portanto, o estranhamento com mundo (no qual a história é parte fundamental) é reforçado na Escola em uma prática alienante que se inicia já nas salas de aulas, passando pela opressão das notas e do vestibular e acabando no fracasso escolar, na evasão e na criminalidade. O ensino da História que deveria fomentar cidadãos, ao contrário produz jovens descompromissados, irresponsáveis que, mesmo bem alimentados e cuidados, podem até chegar ao crime. Assim a Escola ajuda a reproduzir, por meio do seu fracasso em geral (entre ricos e pobres), uma sociedade mórbida e em crise. O objetivo de fazer os jovens saberem toda a História (ou outras “disciplinas”) por meio da “transmissão” de informações prontas e acabadas (nossos vestibulares são um exemplo desse fato) faz de nossos adolescentes pessoas passivas em relação à Escola, ao saber e, por fim, em relação a sociedade. Assim “aprisionado”, nosso jovem não se reconhece em seu ambiente escolar que é uma manifestação da sociedade que oprime, cobra e exclui, em uma palavra, aliena.

Talvez a Escola e a Educação pudessem ser instituições diferenciadas no conjunto dos tecidos sociais, cumprindo o papel que “reclama a sociedade”, se produzisse práticas desalienantes, isto é, fazendo o jovem participar ativamente do processo de aprendizagem, adquirindo a dignidade de sujeito desse mesmo processo, pois o essencial está na sua capacidade de aprender.
O Ensino desalienado pressupõe uma visão de História que não exige do jovem o conhecimento de toda a História da humanidade em todos os tempos, mas, a capacidade de reflexão sobre qualquer momento da história. Pressupõe também o desaparecimento do Ensino feito por “gurus” profissionais (bem ao gosto do ensino médio pré-vestibular) e a construção de uma Escola feita de professores mediadores, isto é, aqueles que aceitam a contingência radical da experiência pedagógica se desfazendo do “ensino carismático”. A posição do professor é muito arriscada: está sempre a um passo de tornar-se guru, de assenhorear-se do lugar do mestre e manter os alunos, para sempre, na condição de discípulos desinteressados e alienados. Nesse caso, não se pode esquecer que o diálogo do jovem não deve se travar com seu professor, mas com a sociedade, o saber e sua vida cotidiana, “conteúdos que não caem nos vestibulares”. O diálogo do jovem deve ser com o pensamento, com a cultura corporificada nas obras e nas práticas sociais (mediado pelo professor).

Portanto, vimos que o combate a alienação não deve se dar apenas na esfera econômica ou na esfera política imediata, precisando de uma percepção mais abrangente de sua atuação e de uma análise mais detalhada de suas manifestações. Segundo Marx, é sempre preciso partir das aparências para chegarmos a essência dos fenômenos sociais. A aparência é a violência de nosso adolescente e a sua essência é a alienação social presente, inclusive, na Escola. Ser há algo de errado em nossa “consciência coletiva”, Durkheim nos lembra que pode haver também algo de errado em nossa Educação. Não podemos querer ou aceitar uma Escola alienante. Marx e Durkheim, apesar de divergirem radicalmente, sempre acreditaram e defenderam uma mesma idéia: o trabalho com as relações sociais é (e sempre será) a base de todos os nossos problemas e soluções. Enquanto isso, atenção: a violência será sempre “tema de redação e questões” nos vestibulares.

A Educação e as aulas de Sociologia


A educação, principalmente a escolar e essencialmente a pública, é tema de debates em São Paulo. O ‘fracasso’ no atendimento a suas metas básicas tem causado angústia na população. Frente às notas recebidas por nossos estudantes, nossa escola pública é considerada péssima pelos órgãos de avaliação nacionais. Por outro lado, nossos secretários de educação (atuais ou antigos), responsáveis pelo planejamento e execução de políticas nessa área, nos oferecem um amontoado de desculpas e também de acusações mútuas tornando nosso entendimento nublado e superficial. Desconfiamos de seus reais interesses e de suas opiniões sobre o assunto, afinal, tudo foi feito (dizem eles), mas os resultados desejados não foram alcançados. Que Educação queremos de fato para o Estado? Talvez essa fosse a pergunta a ser feita logo de início aos nossos representantes no governo. Se couber ao Estado organizar, proteger e desenvolver a sociedade (já dizia Hobbes), isto é, garantir a condição de cidadão à população, o que o fenômeno da educação tem a ver com isso? Tem tudo! Como a Educação (pública) colabora na manutenção do cidadão ao invés da ‘fabricação’ de delinqüentes? Vamos refletir um pouco.

Há muitas respostas possíveis para essas indagações, aliás, cada secretário de Educação tem uma delas na ponta da língua. Entretanto, o ter opiniões sobre determinado assunto nem sempre significa conhecimento suficiente sobre o fenômeno indagado. Se as respostas investigadas pertencem ao universo das relações entre a sociedade e a educação, a sociologia clássica ainda nos ensina muito. Nesse caso, lembro-me de Durkheim (um dos fundadores dessa ciência) e de suas observações a respeito da educação. Obviamente, o referido mestre francês (escritor da virada do século XIX para o XX) pouco poderá nos dizer a respeito de uma educação tecnológica, globalizante e informatizada. Entretanto, por ter pesquisado profundamente os fundamentos de toda e qualquer sociedade, seu discurso ainda é importante no momento.

Durkheim nos alerta que é complicado pensarmos em uma educação que seja ideal e universal como querem os pensadores da escola até hoje. O mestre exemplifica: em Atenas procurava-se essencialmente formar com a educação espíritos delicados e em Roma desejava-se formar crianças que se tornassem homens de ação. Portanto, a educação preconizada em uma determinada sociedade não serve (necessariamente) de modelo para outros povos. A educação inglesa, chinesa ou francesa, talvez não possa servir de modelo para nós brasileiros e paulistas. Aí pode estar o início dos nossos erros em educação.

Durkheim afirma que há em cada sociedade um tipo regulador de educação do qual não podemos nos separar sem vivas resistências. Segundo ele, quando estudamos historicamente a maneira pela qual se formam e se desenvolvem os sistemas educativos, se constata que eles dependem, por exemplo, da religião, da organização jurídica e política, etc. Separada de todas essas instituições sociais, estes sistemas tornam-se incompreensíveis. Enfim, os sistemas educativos seriam realidades que não poderiam ser criadas, destruídas ou transformadas à vontade, ou mesmo pensados como uma realidade distinta da sociedade no qual eles são implementados. Nesse contexto, o que fizeram nossos secretários de Educação? Tudo ao contrário, isto é, pensaram a educação como uma realidade técnica apartada do resto da sociedade, digna de ações de engenharia com focos muito restritos: a evasão escolar e a repetência. Durkheim talvez diria que é preciso pensar e agir em educação como cientistas humanos e sociais e não como administradores. Aí pode estar a continuação de nossos erros em educação.

Durkheim questionou o sentido demasiadamente amplo das definições de educação dos filósofos (Kant, Stuart Mill, entre outros) ao postularem uma educação ideal e universal. Nesse terreno há novos ensinamentos do mestre francês. Para ele, apesar existirem diversas espécies de educação em uma sociedade (profissional, familiar, religiosa, e a privada, entre outras), pois nossa coletividade em seus diversos segmentos reclama aptidões particulares e conhecimentos especiais (certas idéias, usos e maneiras de sentir o mundo) de seus indivíduos, toda a educação deveria repousar sobre uma base comum: não há povo em que não exista certo número de idéias, de sentimentos e de práticas que a educação deva inculcar a todas as crianças (indivíduos), indistintamente, seja qual for a sua categoria social. A construção e a manutenção dessa base comum seria de responsabilidade da educação pública. Durkheim nos explica: cada sociedade faz do humano um certo ideal, tanto do ponto de vista intelectual, quanto físico e moral. Esse humano transformado em ideal é, até certo ponto, o mesmo para todos os cidadãos de uma determinada sociedade. Construir esse ideal, traduzido em maneiras de pensar sentir e agir, considerado pelo coletivo como indispensável a todos os seus membros seria a base da educação pública.

Portanto, a educação pública consistiria na socialização metódica das novas gerações, ou seja, na construção de estados físicos, intelectuais e morais em cada indivíduo da sociedade, em uma palavra, em cada um de nós para o bem de nós mesmos (mais precisamente, da coletividade). Vejam que Durkheim não se refere à função da escola exclusivamente para o mercado de trabalho e para a economia, mas para o desenvolvimento social de uma maneira geral. A cada nova geração de indivíduos, a educação pública se encontra em face novamente de sua função: suprir a necessidade social de criar no homem cotidiano um ser novo. A partir do que os indivíduos recebem dos pais, de suas famílias, enfim, de suas vidas particulares, construir uma personalidade definida para o desempenho de um papel útil na sociedade, eis a tarefa de todo e qualquer sistema educativo. De certa perseverança, juízo, capacidade imaginativa, capacidade de atenção (atributos trazidos da vida cotidiana) até esse novo ser que necessita ser criado a cada nova geração há uma distância muito grande. Durkheim nos adverte: esse longo caminho que os indivíduos devem percorrer é obra da Educação. Talvez nesse ponto esteja o nosso maior erro com relação ao sucesso educacional de nosso país e de nosso estado.

Não nos preocupamos em relacionar a escola com as qualidades e atributos reclamados por nossa sociedade atual. Nossas habilidades e competências escolares são “administradas” visando apenas o sucesso profissional e o desenvolvimento econômico deixando de lado o sucesso social, isto é, o sucesso no (e pelo) convívio. Em uma sociedade dilacerada como a nossa, necessitada de cidadãos e inchada de indivíduos, Durkheim diria que estaríamos “perdendo o foco” em educação. Se há educação é porque também deve haver uma necessidade social para ela, isto é, deve ter a sua função. Aqui está a persistência do nosso erro: insistir em uma disfunção educacional muito grave.

O mestre francês ainda ensina: para que e educação tenha meios enérgicos para realizar em seres humanos uma transformação, é preciso que a mesma se desenvolva em um meio muito especial: a autoridade (não autoritarismo), isto é, na ascendência que o mestre possui (ou deve possuir) sobre seu discípulo, em razão do seu prestígio intelectual, moral e social. Acho melhor pararmos por aqui...

domingo, 4 de outubro de 2009

HOMENS DE AÇO


Em 1943, Getúlio Vargas sabia que, se nós participássemos da Segunda Guerra Mundial, as chances do Brasil ter um papel de destaque no mundo pós-guerra seriam maiores. Nosso presidente sabia também que esse fato coroaria uma possível ascensão do país ao grau de potência regional, fator presente em seu plano de modernização econômica. A formação de um corpo especial de combate (nos moldes americanos) para ser enviado a Europa, proporcionaria ao Exército uma nova logística na forma de equipamentos modernos, armas, munições, uniformes, alimentação e botas, fato que consolidaria o apoio das forças armadas ao governo que , naquele momento, estava frágil. Para boa parte da população brasileira, o envio de soldados para o teatro de operações na Europa significava o troco bem dado aos ataques alemães aos nossos navios, ou seja, um ato patriótico. O Brasil já havia fornecido as bases militares em território nacional, cooperava economicamente com o esforço de guerra e nossa Marinha já lutava ao lado da US Navy na caça de submarinos no Atlântico Sul. Portanto, havia motivos de sobra para o governo organizar e enviar rapidamente a FEB além mar. Em agosto de 1943, foi formada enfim a Divisão de Infantaria Expedicionária, que conteria três regimentos de infantaria, um esquadrão de cavalaria mecanizada, um batalhão de engenharia e forças auxiliares. A mobilização das unidades foi, sem dúvida, a operação mais difícil e delicada que o Exército teve que enfrentar naquele momento: que soldado o Brasil teria para oferecer para uma guerra moderna? Deu-se início a convocação em quase todo o território nacional em uma grande e rigorosa operação de seleção e treinamento de homens. O problema mais complicado dessa intrincada operação foi, inegavelmente, o preenchimento das inúmeras funções especializadas existentes nos novos quadros de organização de tropa (o sistema americano), pois na Reserva (oficiais e recrutas fora da ativa) não havia elementos em número e em condições de preenchê-las. Nesse caso, operários, lavradores, estudantes, comerciários e tantos outros jovens, com idade até 26 anos, compuseram a maior parte da maior força armada brasileira enviada para combater fora do continente em todos os tempos. Era preciso transformar milhares de civis em militares da noite para o dia. Tal transformação deveria obedecer às seguintes normas do US Army: avaliação da capacidade intelectual, feita por médicos psiquiatras e por psicólogos; observação do estado de saúde física e mental, nas unidades de treinamento dos que tenham sido julgados aptos, durante o prazo de três meses; os homens seriam classificados em quatro grupos: - Apto para o serviço do Exército, categoria especial (E).- Apto para o serviço do Exército, categoria normal (N).- Incapaz temporariamente para o serviço do Exército.- Incapaz definitivamente para o serviço do Exército.Os aptos, categoria E, seriam incorporados à 1ª DIE nas funções que exigissem maior dispêndios de energia. Os oficiais de categoria N, não seriam incluídos na FEB. As praças de categoria N. poderiam ser aproveitadas em determinadas funções. Entretanto, o quadro geral das condições físicas e intelectuais da maioria do povo brasileiro naquela época (fruto dos séculos de injustiça e desigualdade sociais que a modernização Varguista não conseguia neutralizar) não atenderia a rigorosa exigência prevista pelo modelo americano. Em 1943, o grosso da população brasileira, consistia de pobres, em larga extensão, analfabetos. A maior parte deles havia crescido com uma dieta simples de arroz com feijão, repetida indefinidas vezes, e estava acostumado a poucas necessidades modernas, Muitos deles poderiam marchar descalços, se necessário, do jeito que sempre andaram na maior parte de suas vidas. Aliás, vários praças brasileiros só foram conhecer um calçado de boa qualidade usando as botas de combate na Itália. A pouca instrução e falta de mentalidade e treinamento para a mecânica dificultou a incorporação dos carros de combate. Nesse contexto dramático de falta de adequação do perfil geral do cidadão brasileiro com as exigências militares de uma guerra moderna, levou o processo de seleção a fazer vistas grossas sob o perigo de não haver homens suficientes para a montagem dos três regimentos de infantaria expedicionária. Como resultado, milhares de analfabetos incorporam-se às fileiras da FEB. Segundo as normas militares modernas, o combatente não pode ser um iletrado, pois já não é mais um simples autômato, dentro da rigidez das formações (à moda francesa), mas uma pequena peça especializada, dinâmica, pensante, capaz de conduzir-se no combate, a despeito da ausência ou perda dos seus chefes. Não raras vezes, terá de transformar-se num pequeno líder dos que o cercam nos instantes de crise. Apesar dessa ressalva, não consta dos relatórios de combate americanos ou da FEB que algum combatente tenha deixado de cumprir suas determinações colocando a vida de pessoas em risco pelo simples fato de não ser instruído escolarmente. As intensas e variadas emoções da luta e as bruscas e violentas mudanças de atitude exigem dos combatentes, além de muito vigor físico, perfeito equilíbrio emocional, do contrário tornam-se presa fácil. Nas montanhas italianas a causa da morte de brasileiros em batalha não se vinculou a desqualificação emocional do combatente, mas sim a causas de estratégia. Apesar de tudo o que as normas americanas determinavam, o cidadão brasileiro, com todas as suas dificuldades intelectuais, se transformou em um combatente moderno em um curto espaço de tempo após ter sido um simples cidadão rural ou urbano. Posteriormente, as categorias E e N foram unificadas devido o alto índice de incapazes para o serviço de guerra, isso determinado pelo processo de seleção. Este fato levou a necessidade de elevar indivíduos de características apenas normais à categoria especial, na qual as exigências eram muito mais severas. Nos casos em que não houvesse elementos para o preenchimento dessas exigências especiais ou quando os reservistas convocados não satisfizessem inteiramente as novas funções, recomendou-se que recrutas fossem matriculados em escolas de instrução. Vale lembrar que os primeiros momentos dos brasileiros na Itália foram consumidos apenas em exercícios físicos e na separação dos grupos de treinamento. Do civil pobre, inculto ou analfabeto construiu-se em pouco tempo um combatente moderno apto a enfrentar os complexos problemas de uma geurra, ou seja, ‘homens de fibra’. Poderíamos continuar esse assunto ainda mais um pouco lembrando que a maior parte dos soldados brasileiros já de saída eram fisicamente deficientes, de acordo com os padrões americanos, e que doenças venéreas ocorriam em alto grau entre eles. Na dieta normal do brasileiro comum havia inúmeras deficiências e os cuidados com os dentes foram muito negligenciados. A questão dentária preocupou bastante nessa ocasião, pois um grande número de inspecionados apresentou-se com a ‘superfície mastigatória’ incompleta e estragada. Era uma exigência que o convocado tivesse pelo menos 26 dentes na boca, o que inviabilizou a incorporação de milhares de homens. Um bom exemplo desse fato é o caso do estado do Pará, que teve 800 convocados, dos quais apenas 150 puderam ser aproveitados. Nesse contexto, sérios problemas técnicos tiveram de ser enfrentados, tais como o da imunização da tropa e o dentário. Porém, nos campos da Itália, os soldados cabos e sargentos da FEB apesar desses inúmeros obstáculos natureza social e da saúde, muitos dos franzinos e débeis infantes agigantaram-se na luta, exatamente por terem um espírito forte que os impeliu para frente: em um primeiro momento um patriotismo e depois o cuidar de si, o cuidar do outro, a irmandade que só nasce nesses momentos de estresse nos quais um põe sua vida nas mãos do outro. Nossos comandantes militares sentiram toda essa imensa dificuldade de organizar nossas tropas, além do mais por causa dos padrões militares franceses adotados pelo Exército, inadequados para uma guerra moderna. Mesmo assim, o comando militar brasileiro esperava superar todos esses obstáculos e lutar ao lado dos americanos. Treinados desde o início da década de 20 por uma missão francesa, as técnicas e os princípios adotados pelos militares brasileiros estavam totalmente ultrapassados. Era preciso recomeçar o treinamento da estaca zero, fornecendo instrução atualizada a todas as unidades. Para muitos oficiais de carreira, tal situação representou um desrespeito à formação militar, há muito tempo fornecida na Academia Militar do Realengo. Nesse contexto, a introdução do sistema americano aconteceu impositivamente garantindo, assim, a modernização da capacidade de combate da tropa brasileira. As diferenças entre o US Army e o Exército brasileiro não eram meramente de estratégia e técnica militar, havendo distinções na alimentação, transporte, comunicações e hierarquia militar, entre outras, que teriam de ser superadas. Para o combate na Itália, por exemplo, era preciso abandonar os ataques frontais de baionetas e aprender as manobras de pequenos grupos (pelotões) e a mecanização. Era preciso abandonar o feijão e o jabá nacionais para uma comida da maior valor calórico e nutricional como peru, frutas e chocolates servidos pelo US Army a seus soldados. Tudo isso foi feito em pouco tempo. A FEB, uma fez inteiramente equipada, treinada e alimentada, era muito mais potente que todo o Exército brasileiro. O soldado febiano em combate na Itália trazia já em sua vestimenta as marcas de toda a sua linhagem especial: Capacete de aço M1, jaqueta de botas de combate americanas cinto e guarnições do Fuzil Spreengfield e sub-metralhadora Thompson, tudo nunca antes visto em solo brasileiro. Como foi exposto, a FEB foi uma tropa que foi formada por meio da superação de inúmeros obstáculos através da transformação de homens comuns com deficiências de várias ordens em combatentes modernos capazes de enfrentar o experiente e bem equipado exército alemão. A falta de experiência em qualquer conflito maior fora do país e o treinamento primeiramente destinado a reprimir revoluções e defender as próprias fronteiras foi substituída por habilidades de combate a altura dos melhores exércitos do mundo. Vimos que a transformação imposta a homens do povo para que os mesmos se superassem nos campo de batalha fez parte plano de modernização econômica imposta pelo governo Vargas. Descobertos nos rincões do país, apesar de não estarem com o condicionamento físico e emocional exigidos para a sobrevivência em um combate moderno, nossos cidadãos precisavam arriscar suas vidas para que as chances do Brasil ter um papel de destaque no mundo pós-guerra fossem maiores. Nosso presidente, na época, media a ascensão do país ao grau de potência regional com envio de brasileiros a condições dramáticas em termos climáticos, físicos e emocionais. Boa parte dos habitantes brasileiros desde a década de quarenta não teria capacidade de suportar os tiros de metralhadora ou as granadas em prol de um modelo de desenvolvimento proposto por seu governo. Os febianos infelizmente viveram isso e no pós-guerra foram esquecidos em seu exemplo de conduta e de superação frente às dificuldades próprias da condição social brasileira. Na Itália, colocaram suas vidas em risco, morreram e sobreviveram para nos contar as histórias de defesa de um país. Agora os tempos são outros e, penso, isso não seria mais possível. Alguns historiadores tentaram difundir uma interpretação da FEB como se essa fosse um repositório de pobres, desmazelados, como unidade correcional, mal treinada e pouco influente na guerra. Atualmente a imagem dos veteranos jogados a própria sorte colabora no fortalecimento dessa impressão nos mais jovens, entretanto, há algumas décadas estavam todos eles lá na Itália, também jovens e prontos para matarem e morrerem por um país que pouco lhes preparou para isso. Certa vez, um general brasileiro disse que a guerra moderna exigia o melhor e o mais representativo no seio da Nação e não analfabetos, doentes...ele tinha razão. A FEB foi feita disso tudo e também de homens de aço!
Marcelo Sampaio