sábado, 24 de julho de 2010

UM BREVE HISTÓRICO DO BULDOGUE INGLÊS


Atualmente o típico buldogue inglês é um animal tranqüilo, fiel, companheiro e dorminhoco, porém esse tipo de cão tem origens que parecem contradizer essas características. Os buldogues nasceram historicamente para os combates, para satisfazer necessidades bélicas do ser humano. Oriundos dos antigos Mastins asiáticos, cães de tamanho avantajado, com uma potente cabeça e detentor de um focinho curto, tornaram-se na antiga Inglaterra cães com a finalidade de combater os ferozes Molossos de origem grega. Os Molossos eram frequentemente utilizados como armas pelo exército romano em suas guerras de conquista na Antiguidade. Os Mastins asiáticos foram introduzidos na Europa pelos hábeis navegantes fenícios que haviam estabelecido uma florescente rede de rotas comerciais no Mar Mediterrâneo. Essa rede terminava no porto da Cornuália, já nas ilhas britânicas. Na época da expansão do Império Romano, os britânicos tentaram resistir à invasão romana utilizando seus Mastins em combates contra os Molossos.

Portanto, no início de sua história, na Grã-Bretanha, o ancestral do buldogue destacou-se participando das lutas dos povos bretões contra o domínio romano quando, no ano de 55 A.C., esse império tentou invadir pela primeira vez as ilhas britânicas. Esse cão, levado à Roma por legionários admirados com a coragem e a ferocidade do animal, foi utilizado também contra os adeptos do cristianismo nas arenas e até contra ursos para a simples diversão de seus donos e para simbolizar a força do Império. Apesar de estarmos muito longe do atual buldogue inglês, observando esses feitos extraordinários dos Mastins lutadores, podemos entender porque em torno desse animal foi forjada a história de um cão que acabou se tornando símbolo e orgulho de uma nação beligerante e conquistadora (primeiro o Império Romano e depois o Império Britânico).

Após alguns séculos, estes Mastins foram mesclados com os cães locais na Grã-Bretanha e foi desenvolvida ali uma espécie chamada de “Pugnaces Britanni”, utilizada pelos habitantes da Ilha para ajudar no pastoreio de bovinos até os açougues.

Na Idade Média, durante o reinado de Henrique II (em meados do ano 1133), a população tinha o costume de organizar lutas dos “Pugnaces Britanni” contra touros. A primeira notícia certa e registrada dessa prática foi narrada sob o reinado de João Sem Terra, no ano de 1209. Um senhor feudal do interior do país, Lord Stamford, passeando pelas muralhas de seu castelo viu dois touros lutando pela posse de uma fêmea. Nessa ocasião, cães Pugnaces de um açougueiro do local precipitam-se sobre um dos touros, seguiram-no pelas ruas do povoado e o abateram após uma luta feroz.

Lord Stanford gostou tanto do espetáculo que presenteou, com as terras onde havia se iniciado a referida luta, o Grêmio (Sindicato) dos Açougueiros. Essa doação foi feita com a condição de, sempre às vésperas do Natal, o Sindicato realizasse ali um combate similar ao que Stanford observara. Denominado de “Bull-Baiting”, esses combates entre os cães dos açougueiros e os touros furiosos se tornaram muito famosos e populares na Inglaterra. No auge da popularidade dessa prática, no qual se apostavam vultosas somas em dinheiro, os cães Pugnaces tinham árduos defensores, tanto na nobreza como entre os deserdados. Espalharam-se arenas destinadas para este espetáculo, cujos vestígios existem até hoje na Inglaterra. Daí provavelmente vem a origem da troca do nome de Pugnace para “bulldog” na denominação desses animais. A palavra bulldog não significa cão-touro, mas sim cão para o touro.

Anos de seleção, aperfeiçoando ainda mais a ferocidade e a coragem, tornaram o buldogue um animal obsessivo por luta e sangue. Nas Bull-Baiting, o touro era amarrado pelos chifres por uma corda a uma estaca no centro de uma arena em forma de círculo. Nessa situação, defendia-se com os chifres tentando cornear o abdome do buldogue. O cão, por sua vez, desenvolveu a tática de rastejar para proteger-se dessas investidas. Estes combates produziam cenas fantásticas: os buldogues atingidos eram lançados para o alto e os Bullots (os donos dos cães) amorteciam a queda dos cães com seus aventais de couros (típicos dos açougueiros) pois, mesmo feridos, os buldogues retornavam para a luta. Os Bullots faturavam muito com as apostas da população em seus cães.

Os buldogues eram possuidores de uma incrível e incomparável resistência à dor e, além disso, o ataque era dirigido para o focinho do Touro, ao qual mantinha preso até que o bovino, ensangüentado e exaurido, caía subjugado. Observa-se, em gravuras antigas, que algumas outras variedades de cães, mais focinhudos como os Spitz, foram testados nestes combates, porém demonstraram um desempenho muito inferior ao do buldogue. A técnica de ataque e destemor nas lutas fez com que o buldogue ganhasse o domínio e a fama neste cenário, tornando-se a raça absoluta e exclusiva para a prática dessas lutas, conquistando ilustres personagens da nobreza inglesa: os Reis Jaime I, Ricardo III e Carlos I.

A Rainha Isabel I que era apaixonada pelo Bull Baiting, proporcionava este espetáculo como parte dos entretenimentos nas recepções oferecidas aos embaixadores e monarcas dos países vizinhos. Em 1795 na cidade de Liverpool, realizaram um espetáculo de Bull Baiting num dique seco e quando acabou a luta abriram as comportas de água fazendo submergir todos os animais vencidos.

Já na Idade Moderna, buscou-se potencializar ainda mais o físico e o temperamento dos buldogues e isto acarretou uma progressiva mutação nesse animal resultando na fixação genética de anomalias. Patas tornaram-se curtas para rastejar melhor e assim poder esquivar-se com mais eficiência dos chifres. Um recuo acentuado do focinho proporcionou um aumento do prognatismo, o que resultou numa mandíbula poderosa cuja a força e poder o próprio cão desconhecia. Dessa época provem algumas peculiaridades físicas que ainda hoje caracterizam de maneira inconfundível esses cães, por exemplo, o fato de esses animais serem dotados de extremidades curtas (para que o touro tenha dificuldades em “chifrá-los”, arremessando-os para o alto), terem o focinho bem curto e com a ponta do nariz recuada em direção aos olhos (para facilitar a respiração durante a mordedura) e a presença de rugas no focinho (para que o sangue do touro escorra com fluência e não entre em seus olhos).

A criação de buldogues que obtiveram êxito em combate se converteu em uma atividade muito rentável, tendo aficionados sobretudo entre os trabalhadores mineiros da região de Black Country. A moda dos Bull-Baiting chegou a tomar parte de toda a Grã-Bretanha não sendo mais privilégio dos ‘açougueiros’ e lordes britânicos. Obteve-se da intensa prática desses combates e da seleção de características peculiares, um cão de força extraordinária em relação ao seu tamanho, agora bem menor quando comparado aos Mastins e Pugnaces de onde se originou. Um cão compacto porém muito musculoso, ágil e feroz.

Nos novos tempos do Iluminismo do séc. XVIII, a evolução do pensamento e o refinamento da civilização européia tornaram os Ingleses conscientes da carnificina injustificável que estes combates representavam. Após muitos debates, a oposição aos Bull-Baitings se fez tão forte que em 1835 se chegou à promulgação de uma lei na qual todos os combates entre animais foram proibidos em solo britânico. Vale lembrar que essa atitude proibitiva dos britânicos já havia sido tomada por holandeses em 1698 e por franceses em 1834, fruto da modernidade iluminista.

Com a ilegalidade dos combates entre cães e touros, o buldogue esteve a ponto de extinguir-se, pois não havia mais interesse dos criadores em se manter a raça. Tentou-se utilizá-los como cães de guarda e defesa, porém a agressividade típica desses cães era muito grande, tornando-os demasiadamente perigosos para esse fim. Nesse período de ilegalidade, a raça ficou nas mãos de bandidos, de indivíduos marginais e mal intencionados, que promoviam e mantinham as rinhas na clandestinidade.

Em uma direção oposta aos marginais, os autênticos amantes e entusiastas do buldogue começaram a modificá-lo para resgatar o cão desse triste quadro. Apesar da raça não ser remunerativamente interessante nesses tempos de ilegalidade dos combates, o amor por ela e pelo patrimônio genético que estava para se perder motivou uma espetacular reação de vários criadores.

Nesse contexto, as subseqüentes décadas foram utilizadas para promover a eliminação da ferocidade do buldogue. Esse animal extremamente perigoso e preparado para lutar deveria se transformado completamente. Os verdadeiros amantes da raça (e não dos combates) iniciaram um paciente trabalho de triagem para a seleção dos cães que apresentassem um temperamento equilibrado, dócil e seguro. Neste empenho, foram impedidos de se reproduzirem todos os cães agressivos, neuróticos ou inconstantes. Estes foram sistematicamente rejeitados em favor dos exemplares seguramente de boa índole, tornando o buldogue seguro e adequado ao convívio civilizado. O buldogue tornou-se um cão com índole inteiramente diversa daquela utilizada nas arenas, apesar de manter boa parte de suas características físicas que o tornava inconfundível. Nessa direção, aficionados com seriedade, se ocuparam em desenvolver essa raça de boa índole nos subúrbios de Londres, Birmingham, Sheffield y Nottingham. O interesse pelo buldogue foi recuperado aos poucos e,nos dias 3 e 4 de dezembro de 1860, precisamente em Birmingham , os novos buldogues fizeram sua primeira aparição num ringue de exposição.

A primeira exposição de cães foi na Inglaterra em 1859

Os Ingleses foram os pioneiros na cinofilia mundial e os estudos e práticas relacionadas à recuperação do buldogue ajudaram muito nessa história. Em 1863, Samuel Wickens redigiu o primeiro Standard de uma raça canina no mundo cujo conteúdo era o novo buldogue. Nesse mesmo ano foi inscrito o primeiro buldogue no famoso e pioneiro “Livro de Origens” da cinofilia britânica. O nome de registro desse buldogue era marcante e significativo para a continuidade da raça: Adão. Um ano depois, em 1864, se criou o primeiro Clube desses cães: “The Bulldog Club”. O pioneirismo dessa associação antecedeu a fundação do primeiro Clube de cinofilia do mundo, que existe até hoje, o famoso “The Kennel”, fundado em 1873.

Portanto, é importante sempre lembrar que “The Bulldog Club” foi o primeiro Club dedicado a uma raça canina, antecedendo em 9 anos a fundação do primeiro clube de cinofilia da histó Apesar de pioneiro, o “The Bulldog Club” teve uma existência breve, encerrando suas atividades em 1875. No mesmo ano foi fundado o “The Bulldog Club Incorporated”, em atividade até a presente data, passando a coordenar as atividades sobre a raça na Inglaterra. Esta nova associação se encarregou de revisar o Standard elaborado por Wickens, tornando-o oficial. Esse novo Standard se manteve inalterado até 1909, ano em que sofreu modificações na sua forma e não no conteúdo, permanecendo praticamente inalterado até os dias atuais na Inglaterra.

Neste período, os novos padrões do buldogue começaram a difundir-se na Europa, onde encontraram uma aceitação crescente por parte do público e da crítica que perdura até hoje. Os ingleses também fizeram boa parte do mundo conhecer o buldogue através de seus vários domínios políticos e militares nos quatro cantos do planeta.

As várias “caras” do buldogue

Ao longo da história da criação do buldogue, esse cão tem sido vítima das decisões (muitas fezes infelizes) do homem. Isso ocorreu, por exemplo, quando no passado selecionamos os exemplares mais ferozes com vista à eficiência nos combates e também quando exageramos a morfologia desse animal para convertê-lo em um autêntico show-dog (cão espetáculo). O buldogue foi modificado até o ponto de ser proposta a sua remodelação profunda devido à proibição dos combates públicos com touros, fato que obrigou o homem a recuperar as suas características de cão normal. Essa á a marca registrada do buldogue do século XX e XXI.
Entretanto, esse caminho não foi fácil para o buldogue. Quando esse animal recuperou-se do passado sangrento se convertendo num cão de exposição, muitas pessoas decidiram criar a raça.

Nesse meio de entusiastas, surgiram também as pessoas mal preparadas e desejosas de obter somente um ganho fácil. Com a intenção de produzir exemplares cada vez mais típicos, ultrapassaram-se novamente os limites da normalidade para se obter um cão com características hiper típicas: cabeças enormes, extremidades curtíssimas e condutos nasais inexistentes. Acabou transformando na caricatura de si mesmo e começou a apresentar sérios problemas. Observavam-se animais tão deformados que sequer eram capazes de dar uma volta num quarteirão atrás de seus donos. Novamente, os autênticos amantes da raça rebelaram-se agora contra a moda que imperava, do cão hiper tipo. Entre as duas facções que se formaram, felizmente prevaleceu um meio termo. Optou-se por uma raça dotada de uma constituição física sem excessos de nenhum tipo. Este movimento de opinião obrigou aos criadores e juizes seguir o tipo desejado pelo público.

O buldogue hoje

Se atualmente o buldogue é adorável e incomparável companheiro das crianças, é incontestável que nos primeiros textos do Standard dessa raça o redator recomendava que os cães crescessem em restrito contato com as crianças. Ver uma ninhada de filhotes de buldogue completamente enrugada faz desaparecer qualquer temor que havia por eles.

O mundialmente famoso e original buldogue inglês chega ao início do terceiro milênio como um clássico, uma raça que jamais sai da moda. Um cão destinado a um seleto grupo de pessoas que possuem sensibilidade para apreciar este cão dotado de qualidades estéticas da mais alta classe e de um temperamento dócil exemplar. Não existe nenhum outro cão como o buldogue.

domingo, 11 de julho de 2010

A Experiência da Força


Os fenômenos abordados pelas Ciências Sociais são algo de fantástico. Afirmamos isso não só levando em consideração a quase infinitude de seus temas e de suas formas de abordagem. O fora do comum próprio da Sociologia, Economia e da Política reside também em outras circunstâncias. O fato de todos os cientistas sociais estudarem relações humanas das quais são produto e nas quais diretamente participam, torna o trabalho de investigação extremamente distinto quando comparado à tarefa de outros cientistas. Não estamos nos referindo aos problemas (“incapacidade”) da objetividade e imparcialidade nas conexões entre o sujeito do conhecimento com o objeto a ser conhecido (construído), sempre lembrados como aspectos negativos desse tipo de ciência. Esse é o ponto chave, porém se entendido de outra forma. O incomum, a que nos referimos, está na oportunidade única que somente os sociólogos tem de experimentar as múltiplas sensações próprias do fato de ser simultaneamente sujeito e objeto do conhecimento(e às vezes a fusão de ambos) e, portanto, de estudar o seu mundo e de colocar em prática os resultados de seu trabalho transformando a si mesmo.

Nesse contexto, a política é a forma mais representativa da condição incomum do cientista descrita acima. Experimentar conscientemente o poder, a força, a dominação, seus fundamentos, objetivos e construção, tudo isso em nós mesmo e nas pessoas a nossa volta é algo incontestavelmente fantástico. Quando somos artífices e objetos do exercício do poder, experimentamos profundamente a condição especial dos cientistas sociais.

É preciso ao cientista social, em várias oportunidades, a experiência da política para que amadureça nele a compreensão cidadã de sua inserção social no mundo que o rodeia, na comunidade da qual faz parte e atua, enfim, na vida em comum na qual existe. Para que fique claro tudo o que tentamos dizer, vamos dar o testemunho de algo vivido por nós nesse contexto.

Há algum tempo tive a oportunidade de “ver de perto” o fenômeno do poder. Senti na pele a sua dinâmica própria e o aceitei após muitas reflexões e considerações: recebi uma advertência da instituição em que trabalho constrangendo o meu comportamento, acrescido da proibição de alguns de meus atos, enfim, da coerção através do uso da força. Foi me retirada a liberdade de ação sob a ameaça de castigos a minha pessoa caso eu resistisse.

Antes que alguém imagine qual foi a péssima atitude que tive, passível de advertência institucional, adianto que não machuquei ninguém, roubei, ou coloquei a vida de outra pessoa em risco. Não pratiquei o falso testemunho, muito menos depus contra a integridade institucional de meu local de trabalho. Garanto! O que foi feito não ultrapassou os limites das situações normais de uma pessoa que deseja o melhor para si, que tem sentimentos autênticos, que orienta a vida para o sentido da felicidade, do bem estar individual sem intenções maléficas ou destrutivas daquilo que consideramos essencialmente humano. O que fiz? Apenas me apaixonei por um projeto na qual acreditava e sobre o qual tinha todas as justificativas e argumentos plausíveis e aceitáveis. Esse projeto me arrebatou de forma irresistível.

Entretanto, o exercício da força foi praticado sobre mim. Sim! A força me constrangeu. Pessoas com as quais tinha ( e ainda tenho, espero) amizade, na posse de meios de coerção (até meios violentos como a intimidação), influíram no meu comportamento. Impuseram a mim a suas próprias vontades, e venceram todas as minhas resistências. Deixaram bem claro para mim que, apesar de entenderem que o meu vínculo com eles ( e com a instituição que eles representam) ser uma relação social, ele é pautado em uma relação desigualdade. Isso foi uma das marcas da advertência, pois não me foi dado a chance de contestar ou me justificar. Foi um ato de poder a maneira do príncipe de Maquiavel: “justificado por Razões maiores”. Foi, em parte, a prática da dominação legal weberiana.

Sempre pensei que ter poder não era, basicamente, estar em condições de impor a sua própria vontade contra qualquer resistência. Seria antes à maneira durkheimiana, dispor de uma autoridade (capital de confiança) tal que um grupo de pessoas me delegasse o poder da realização de fins coletivos (como um escritor de renome, um pensador ilustre ou um velho sábio que influem no comportamento das pessoas ditando formas de comportamento por aceitação consensual produto de suas respectivas ascendências sociais). Porém, apesar de eu considerar meus chefes institucionais como pessoas que respeito e admiro, a advertência sobre meu comportamento foi um ato coercitivo que se realizou sob o uso da força, ou da ameaça do uso da mesma caso houvesse resistência (a minha possível e provável demissão). Em hipótese alguma foi um convencimento por ascendência social ou consciência coletiva.

Após algum tempo, me vi refletindo seriamente sobre o ocorrido. Talvez para eu poder absorver, digerir o ato de força do qual foi alvo, buscando entendê-lo de forma mais analítica e crítica, ainda que sofrendo as dores do constrangimento. Fiz isso na companhia de Hobbes, filósofo que eu ensinava aos meus alunos naquele momento.

Hobbes me mostrou que eu precisava superar a compreensão da restrição da minha liberdade (conteúdo da advertência institucional que recebi) como um ato simplesmente de exercício do poder de quem o possui frente a mim, alguém que não possui o poder, isto é, como um ato exclusivamente de desigualdade social (institucional) sem qualquer outro tipo de fundamento ou propósito.

Era preciso deixar os óculos anarquistas e libertários de lado para a compreensão mais crítica do ocorrido. Afinal, sou um professor que tento ser amigo de meus alunos, porém, ainda assim, detenho o poder de adverti-los, poder esse que os alunos não têm sobre mim. Lembrei-me de todas as formas de advertência e punições que utilizamos em nossos alunos que resistem a nossa autoridade, mesmo sendo esses alunos cordiais na maioria das vezes conosco. Hobbes me fez lembrar de alguns fundamentos da política, através da minha experiência como aplicador da força: a submissão civil (exemplo: a ordem nas salas de aula) não se confunde naturalmente com a aceitação da autoridade/ ascendência social. Nós professores experimentamos diariamente essa tese hobbesiana de que a certeza da impunidade mostra como é frágil a nossa autoridade. Por isso advertimos e punimos constantemente os alunos que resistem em nos ouvir, obedecer, enfim, a serem disciplinados.

O mais interessante é que as nossas salas de aula são exemplos notáveis de como nos comportamos em sociedade. Na sociedade, como nas salas de aula, as pessoas nunca se entendem sobre os valores, opiniões, conclusões, nunca alcançam a unanimidade para designar o que é verdade, a sabedoria, a virtude etc. Nesse contexto, espontaneamente cada um de nós pensa ter condições de chegar à verdade, à felicidade, a melhora de sua vida, enfim, de governar a si próprio. Nossos alunos são exemplos de como nós nunca somos animais que tendemos ao consenso e nunca nos inclinamos perante a “razão pura”.

Não obedecemos a alguém por ele estar com a Razão, mas sim por que seremos castigados se infringirmos a ordem. Em última instância, foi assim que ponderei quando fui advertido. Totalmente envolvido com as minhas paixões, convicções, totalmente justificadas pelas minhas razões, nunca seria capaz de entender o porquê fui advertido.

A paixão é o estado natural do ser humano. É o que o faz acreditar no futuro, a mudar de vida, a se empenhar no enfrentamento dos problemas a ser feliz e a buscar sempre o melhor para si. Por isso adoramos a liberdade e a esperança de que poderemos vencer. Só é necessário ter a coragem de tentar fazer o que for necessário. Porém, a felicidade e a liberdade (fundamentos de nossa existência humana), não estão sintonizadas com o bem comum e, dessa forma não podem ser o cimento da sociedade. Se buscarmos a realização de nossos sonhos, quase sempre não buscamos o bem comum.

Hobbes foi um dos primeiros filósofos políticos a afirmar que a sociedade é um conjunto de atividades que não tem como objetivo o bem comum, e que esse conjunto precisa exercer-se no quadro da paz. Nesse contexto, a possibilidade de gozar ao máximo, em paz, de todas as comodidades da vida, exige a segurança. O bem comum é algo inalcançável tendo em vista as paixões humanas, o consenso em torno de uma autoridade social é uma utopia entre os apaixonados pela vida e pela liberdade. Mas essa paz precisa ser construída entre as pessoas para que as mesmas possam viver seguras. Essa paz é produto do uso da força. Para que uma pessoa tenha espaço para realizar seus sonhos e desejos, outros precisam ser constrangidos em seu comportamento, pois todos, igualmente, precisam ter a chance de viverem e isso só é possível em paz.

Segundo Hobbes, no princípio existem indivíduos apaixonados e em luta (mesmo que latentes) em busca da realização de seus desejos, sonhos e convicções impossibilitando por causa disso a vida em comum e a segurança de todos. O problema político assim é o de encontrar uma solução, permitindo que esses indivíduos separados por suas paixões, retraídos aos seus interesses particulares, ciosos pela a conquista de seus objetivos, sejam integrados, apesar de tudo, numa totalidade em que se preserve o espaço de todos. Para tanto, o medo da punição ainda serve como um excelente instrumento.

É preciso uma legislação encarregada de disciplinar a insociabilidade natural dos homens apaixonados. Trata-se de obter um equilíbrio dos direitos de todos em meio ao antagonismo, que continua sendo a trama do social. É preciso que cada pessoa esteja ciente de que, pela aplicação da força, a agressividade dos demais se encontrará limitada e que a minha liberdade respeitará todas as demais (por medo da aplicação da mesma força sobre mim) e que, portanto, também não encontrará obstáculos para o seu exercício.

Nesse contexto, o poder é a condição para que a reciprocidade dos procedimentos corretos (base de uma sociedade racional) se torne alguma coisa crível. Para Kant, outro filósofo brilhante, objetivo da união civil seria o de garantir a independência de cada um frente ao arbítrio necessitante de outrem. Meu comportamento foi limitado para que fosse garantido a independência da instituição na qual trabalho e de suas linhas mestras ( e de todos aqueles que acreditam nela ) frente a minha vontade de realizar o meu sonho.

Por que reduzir o poder à proibição, à censura, à repressão? Por que pensar no poder enquanto limitador, dotado apenas do poder do não, conduzindo apenas a forma negativa do interdito. O poder é menos o controlador de forças que seu produtor e organizador. Deixemos de representar o poder como uma instância estranha ao corpo social e opor o poder ao indivíduo. O poder nos garante a vida em comum.

Que o poder pode limitar à sua maneira as minhas liberdades, tudo bem, mas nem por isso ele será mero (apenas) exercício de uma força repressiva. Sem essa força, cujos efeitos podem ser bem desagradáveis, não haveria paz, unificação e união nem sociedade. Portanto, não há comunidade sem unificação, não há unificação sem poder. A multidão se torna um corpo político apenas com o uso da força.

Somente o exercício de um poder é capaz de compensar o isolamento do homem em seus próprios sonhos e de reivindicar a sua condição de indivíduo inserido em uma sociedade.

Aprendi essa dura lição hobessiana "na pele" e assim de fato experimentei o poder. Porém, ainda quero realizar o meu sonho! Apenas tentarei de outra forma.