domingo, 18 de outubro de 2009

A Ciência e a Política: respondendo a alunos.


Os bons alunos sempre fazem os professores refletirem sobre as maneiras mais adequadas de apresentar uma disciplina, seus conteúdos, assuntos e problemas em sala de aula. Através de questionamentos, os estudantes exigem que os professores deixem a “comodidade” acadêmica de lado e procurem novos conceitos para dar respostas as indagações escolares. O importante é que essas respostas não sejam “fechadas” e conclusivas, mas sim “abertas” e reflexivas, isto é, que instiguem os alunos a continuarem seus pensamentos através de novos caminhos.
Certo dia, alguns alunos propuseram a questão das relações entre a Ciência e a Filosofia. Os mesmos afirmaram ter mais atenção as ciências exatas do que a Sociologia (ou ciências humanas) pelo fato das primeiras serem conclusivas, objetivas e partirem da análise de fatos incontestáveis da natureza e não de reflexões, pontos de vista e debates intermináveis como as últimas. Enfim, a Física levaria a um conhecimento da realidade e a Sociologia levaria a discussões políticas.
Essas conversas me fizeram lembrar de alguns estudos que fiz na faculdade acerca da Ciência e de sua história. Nesses estudos, aprendi com meus professores que as relações entre a Física, a Filosofia e a Sociologia são mais estreitas do que eu suspeitava. O diálogo produtivo entre essas áreas do conhecimento, aparentemente estanques e incomunicáveis, foi o caminho apontado por meus professores para eu formular idéias seguras a respeito dessa questão, idéias fiéis ao nível de desenvolvimento atual dos estudos na área da epistemologia. Portanto, haveria tanta política na constituição da Ciência (inclusive na elaboração de seus conceitos mais abstratos e em suas técnicas aplicáveis) quanto no seio de uma comunidade econômica ou esportiva. Em uma expressão, a política estaria presente na Ciência bem antes do cientista se candidatar a um cargo eletivo ou fazer alguma manifestação pública. Nesse caso, os conceitos sociológicos seriam elucidativos para a compreensão mais aprofundada do fenômeno da Ciência.
Desses estudos universitários não posso me esquecer de um pensador em especial que me norteou: Thomas Kuhn. Kuhn foi o mais famoso cientista de sua época. De um modo incomum, começou seus estudos acadêmicos como físico teórico, ou seja, não apenas como alguém interessado em conhecer as teorias da Física em suas diversas aplicações na “realidade”, mas também na história dessa ciência. Esse fato biográfico o levou desde cedo às reflexões filosóficas a respeito do fazer científico. Portanto, as reflexões de caráter mais livre e menos disciplinado marcaram a carreira universitária de Khun e talvez isso tenha sido a sua grande vantagem frente aos teóricos de sua época.
Ao longo de investigações acerca da história da Física, Thomas procurou compreender a Ciência a partir de um contexto sociológico, fazendo muitas descobertas. Nesse contexto, se deu conta de que a maneira comum como vemos o desenvolvimento da Ciência não se ajustava com as maneiras como realmente as ciências nascem e se desenvolvem ao longo do tempo. A maior descoberta de Khun foi que o conhecimento científico não se desenvolve de modo cumulativo e contínuo. Ao contrário, esse crescimento é descontínuo, opera por saltos qualitativos, que não se podem ser avaliados ou justificados em função de critérios de validação lógico-científico tradicionais, mas sim de fatores sociológicos próprios da organização do trabalho científico. Alguém encontra esse posicionamento crítico em relação às ciências nos livros e apostilas do Ensino Médio? Vamos explicar isso nas próximas linhas.
O conjunto de todos os princípios e métodos que constituem uma ciência (transcritos, por exemplo, nos livros e apostilas de Física) é chamado por Kuhn de “paradigma”. Procurando ser fiel ao autor, o conceito de paradigma deve ser entendido em um sentido fundamental: refere-se àquilo que é partilhado por uma comunidade científica, será uma forma de fazer ciência, uma matriz disciplinar. Nesse caso, uma disciplina se torna uma ciência quando adquire um paradigma, isto é, um modelo. Assim, amo, amas, ama, amamos, amais, amam é um paradigma da conjugação do indicativo presente dos verbos regulares da Língua Portuguesa terminados em ‘ar’, o uso de certas expressões e cálculos matemáticos são o paradigma para descrever e explicar a dinâmica de certos fenômenos naturais etc.
Uma comunidade científica caracteriza-se pela prática de uma especialidade científica, por uma formação teórica comum, pela circulação abundante de informação no interior do grupo e pela unanimidade de juízo em assuntos profissionais em torno de um paradigma. Em sentido particular, esse paradigma é um exemplo; O paradigma é, neste sentido, uma “concepção de mundo” que, pressupondo um “modo de ver” e de “praticar”, engloba um conjunto de teorias, instrumentos, conceitos e métodos de investigação. De certa forma, a dinâmica do paradigma kuhniano me faz lembrar a teoria dos Fatos sociais e da Cosnciência Coletiva da sociologia de Èmile Durkheim com e suas formas de pensar, sentir e agir sociais, coercitivas, gerais e exteriores. O paradigma indica à comunidade o que é interessante investigar, como levar o cabo essa investigação, impondo um sentido ao trabalho realizado pelos investigadores e limitando os aspectos considerados relevantes da investigação científica. A comunidade limita-se a resolver um conjunto de problemas que o paradigma lhe vai fornecendo, toda a investigação é realizada dentro e à luz do paradigma aceite por ela. O cientista não procura questionar ou investigar aspectos que extravasam o próprio paradigma, caso contrário não terá a atenção do grupo no qual está inserido, será excluído como um “louco”, ou como ignorante e ingênuo.
Deste modo, o paradigma que o cientista adquiriu durante a sua formação (seja na escola ou na universidade) fornece-lhe as regras do jogo, descreve-lhe as peças a utilizar e indica-lhe o caminho ou objetivo a atingir. Isto significa que as regras fornecidas pelo paradigma, não podem ser postas em causa, já que o paradigma é o sentido de toda a investigação e o próprio enigma a investigar não existiria sem ele. Esta crença exacerbada no paradigma demonstra-nos que o trabalho do cientista exprime uma adesão muito profunda ao grupo acadêmico no qual ele faz parte. Nesse caso, o aprendizado em ciência não apenas “liberta” a pessoa da ignorância como a faz também aderir a uma comunidade cheia de regras e controladora de suas práticas e pensamentos, enfim, como diria a sociologia de Durkheim, a uma sociedade.
Nesse contexto, nenhuma investigação de fenômenos poderá ser levada a cabo com sucesso na ausência do corpo de princípios teóricos e metodológicos (o paradigma) aceito pela academia e que permitem, inclusive, a seleção e a validação do que se observa! Aqui se nota um dos principais enganos da concepção clássica de ciência, que imagina ser possível fazer observações neutras da natureza. Nas concepções contemporâneas, reconhece-se que fatos e teorias estão em constante relação de interdependência, como que em “simbiose”. As teorias contribuindo para a seleção de fenômenos, classificação, concatenação, predição e explicação dos memos. De posse de um corpo de princípios teóricos e regras metodológicas aceitas socialmente( primeiro dentro do grupo acadêmico e depois amplamente pela sociedade), o cientista não precisa a cada momento reconstruir os fundamentos de seu campo de conhecimento, começando seus trbalhos de princípios básicos já dados (exteriores ao cientista) e justificando o significado e uso de cada conceito introduzido pela autoridade imposta pelo paradigma que o torna acadêmico. Lembrei-me nesse momento dos livros de Foucalt (“A história da Loucura”e “Vigiar e Punir”) nos quais é explicitado a história da formação do paradigma moderno da Razão e da Ciência intimamente relacionado ao desenvolvimento do paradigma da disciplina policial, psiquiátrica e do próprio conceito de Saúde de nossos corpos e mentes.
Khun operou um rude golpe na imagem da Ciência e da Racionalidade modernas consolidadas a partir do século XVIII. Inaugurou um discurso inovador, que privilegia os aspectos históricos e sociológicos na análise da prática científica, desvalorizando os aspectos lógio-metodológicos que ainda encontramos no discurso presente nos livros e apostilas do ensino dessa disciplina para o Ensino Médio.
Seus estudos nessa área apareceram publicados de modo mais amplo em seu livro de 1962, A Estrutura das Revoluções Científicas. Esse trabalho viria a exercer uma influência decisiva nos rumos da filosofia da ciência. Indico esse livro para a leitura.
Espero com esse texto ter apresentado novos caminhos para a reflexão acerca das relações entre a sociologia e as ciências exatas e da Ciência com a política. Ofereço-o a meus alunos esperando ter respondido aos questionamentos deles, especialmente a aluna Gabi. A história da Ciência leva-nos mais a Sociologia do que a Filosofia. Pensem nisso.

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