terça-feira, 13 de outubro de 2009

O Soldado como um Amigo.


A leitura do “Meu Diário de Guerra” do ex-combatente da FEB, Sr. Flávio Villaça Guimarães, pode levar ao desapontamento o leitor comum e despertar nele uma série de novas curiosidades a respeito do fenômeno da guerra. Munido apenas do que nos é comumente apresentado sobre o tema, isto é, a guerra como um conjunto de armamentos, estratégias, combates, “heroísmo”, inimigos e mortes, a pessoa comum provavelmente se sentirá perdida por não encontrar na maioria das páginas escritas pelo soldado citado fatos dessa natureza. Em meio à compreensão dos fatos narrados e relatados por Villaça em seu ‘diário’, aparece outra face da ‘guerra’ que, ao lado dos combates e indiretamente relacionados com eles, pode não ser do conhecimento da maioria das pessoas interessadas em compreender esse fenômeno. Villaça realça em seu relato fatos vividos cotidianamente que, rigorosamente falando, não são exatamente o que costumamos imaginar a respeito da experiência militar de um soldado em uma guerra.

Logo no início do ‘diário’, é relatado o trânsito dos soldados para o embarque em um navio que os levaria para os combates na Itália. Ao invés da movimentação de homens rigorosamente em ordem, por meio de fileiras de combatentes em marcha, como seria presumível em nossa imaginação comum, Villaça nos narra uma outra espécie de acontecimento:

“Os ‘pracinhas’ misturados com os civis se acotovelavam mais parecendo formigueiro humano. Quando da entrada ou saída nas estações, era até hilariante, pois quando as portas se abriam o ‘empurra-empurra’ dos que queriam sair e dos que queriam entrar se tornou uma comédia.(...) Tínhamos que tirar o quepe e o cinturão erguendo-os ao ar para não os perdermos por ocasião da avalanche durante a entrada ou saída do trem. (...)

Uns ao chegarem à cidade iam logo se dirigindo para os bares a fim de tomarem um aperitivo. Toda aquela balbúrdia, que tinha um sabor de hilaridade, parecia um prenúncio de que, dali para frente, nossa vida iria mudar, e muito, isto é, desceu o pano do circo e o drama que iríamos viver estaria por começar.(...) Uns companheiros aguardavam as instruções, cabisbaixos, sentados sobre os já famosos “sacos A e B” (sacos nos quais os soldados carregavam suas roupas e outros utensílios de campanha). Outros, mais pensativos, agitados, andavam de um lado para o outro, dando a pensar que haviam perdido a fala, outros cantarolavam e assoviavam.”

Vemos nessas passagens uma cena inusitada de pessoas vivenciando um momento ímpar em suas vidas, recheado de emoções e comportamento dos mais diversos, trazendo à tona, por outro lado, a unicidade do ser humano comum/civil, que mora atrás da farda, reagindo a uma situação de estresse com as fraquezas e medos que essa situação sempre prevê. Esse quadro parece ser bem diverso daquele apresentado por meio da imagem comum que foi construída do militar: o soldado em todas as circunstâncias disciplinado, sisudo, compenetrado, frio e implacável. Em outra passagem do mesmo diário, ainda a respeito do embarque, é relatada a embriaguez de vários homens, inclusive de um sargento, como forma de suportar o estresse da véspera do embarque. Os relatos da viagem para a Europa são repletos de outras passagens que colaboram para fortalecer nosso argumento. Dessa forma, caberia aqui uma indagação a respeito de até que ponto o treinamento e a instrução militar transformam inteiramente o homem comum em um militar preparado para uma guerra, sem abrir brechas para o retorno do comportamento do homem civil. Que tipo de mudanças são esperadas nesses homens que passam pelo processo de treinamento militar e quais são de fato realizadas? Além das experiências típicas do front, quais outras são presentes na vida dos soldados em uma guerra?

Em outras passagens do ‘diário’, o soldado relatado por Villaça parece nos obrigar a construir outra imagem do combatente além daquela exaustivamente trabalhada no cinema ‘hollywoodiano’. Muitas vezes longe das explosões das bombas e do pipocar dos tiros, o pracinha brasileiro aparece muito mais envolvido em situações sociais não previstas nos combates, isto é, ainda como um homem de farda, porém nem sempre armado, obrigado ou disposto a atirar:

“No dia 17/07/44, ficamos ali aguardando ordens do Comando ‘negociando’ frutas com os moradores vizinhos, sem contar com o ‘câmbio’ de cigarretes com o vinho frisante desenterrado pelos camponeses; estes enterraram as garrafas de vinho nos seus terrenos a fim de preservá-las, uma vez que o local havia sido invadido pelos alemães. Como caímos nas graças dos italianos, fomos nababescamente serviços por aquela gostosa bebida fermentada (...)”.
“Tivemos a oportunidade de conversar com várias pessoas na cidade. Uma dessas conversas foi em uma ‘andada’ de bonde que fizemos junto com um italiano idoso que procurou puxar conversa conosco. Esse senhor pediu para que o acompanhássemos até a casa dele. Entramos e ali ficamos conversando por algum tempo. Logo apareceu uma garota de uns 18 anos, neta do velho, com uma bandeja nos oferecendo copos de vinho. O nome dela era Tina e ela teve seu marido levado pelos alemães. O velho trabalhava como carpinteiro para os americanos e o que ganhava mal dava para sustentá-los. Oferecemos cigarros para ele, pois era a única coisa que tínhamos em mãos, e eles foram muito bem recebidos pelo velho com um sorriso de contentamento.”

O contato do pracinha com a população local é narrado inúmeras vezes pelo soldado Villaça, nos levando a crer que foram muito freqüentes na Itália, mas não somente lá, e de extrema utilidade para a dinâmica da adaptação da tropa brasileira no “Teatro de Operações” e muito mais para a sobrevivência material e psicológica da população italiana, há muito desvalida de recursos gerais mínimos. Talvez aqui caiba uma indagação acerca das maneiras de contato realizadas entre os soldados e a população local, suas dinâmicas próprias e sua participação no sucesso da empresa militar brasileira, bem como na manutenção de situações sociais mínimas para a sobrevivência de grupos humanos que ali suportavam todas as privações, incluindo aí os soldados brasileiros. É possível que as relações civis com a população local, inclusive em festas, bailes e situações de confraternização e entretenimento (estas, também relatadas no ‘diário’), tenham não só ajudado a amenizar a dureza do front, mas também, e fundamentalmente, tenham participado ativamente (da mesma forma que os combates) da experiência militar dos praças durante a guerra.

Essa é uma leitura sugerida por Francisco César Ferraz (soldado brasileiro) quando dos intervalos entre uma ação e outra, ou até mesmo ocasionalmente, quando

“Os soldados das linhas de frente recebiam licenças dos comandantes para descansar da extenuante rotina de combate, o que faziam em cidades com maior infra-estrutura para recepção de milhares de homens ávidos por alguns pequenos confortos, como tomar banhos quentes, dormir em colchões e comer algo menos insosso que as rações de combate”.

Villaça, como “soldado observador”, participou de várias operações militares na Itália, servindo como peça militar fundamental localizada entre a Artilharia, a Infantaria e os ‘Postos de Comando’ aliados, sendo, inclusive, parabenizado por isso. Em algumas vezes, este soldado ficou muito próximo do inimigo, podendo até vê-lo em suas movimentações.

Na verdade, queremos dizer que seu relato também enfoca e traz à tona outros fatos enfrentados cotidianamente pelo pracinha brasileiro na Itália, os quais podem ter sido tão significativos na estruturação de sua experiência militar como os combates, embora possam ser ainda desconhecidos pela maioria dos brasileiros. Fatos como as relações de companheirismo construídas entre os soldados no front e que talvez tenham sido a melhor experiência de suas vidas nos campos de batalha; as adversidades da natureza, como o clima e a topografia, que testaram os limites humanos desses homens possivelmente mais do que as explosões e os tiros; a amizade que brotou do contato entre os soldados e a população local, que pode ter auxiliado para que algumas experiências sociais civis fossem mantidas e tenham ajudado na adequação, acomodação e resistência dessas pessoas em meio às situações terríveis de desagregação humana em uma guerra. Trata-se de facetas da guerra que provavelmente nasçam somente em um “Teatro de Operações” e que não são devidamente apreciadas pela produção de filmes de guerra, como o “Resgate do Soldado Ryan”. Ainda em outra passagem do “diário”, lemos o seguinte:

“Dia 13 (domingo) tivemos permissão para darmos uma esticada até Tarquinia. Saí com o Cabo Êbe e lá ficamos até às 17 horas. Assistimos a uma partida de futebol entre dois times da cidade”.
“Num canto da cidade havia um cartaz anunciando a projeção, no Cine Teatro Garrison, do filme “Cover Girl” (Modelos), estrelado pela Rita Hayworth. O cinema, que tinha capacidade para duas mil pessoas, estava superlotado, com expectadores de várias nacionalidades: soldados ingleses, canadenses, australianos, franceses, americanos, indianos, brasileiros, italianos e outros de outros cantos do mundo. Fizemos um “relax”, saindo de lá por volta de uma hora da manhã. No segundo dia de nossa estada em Florença, fui a um teatro que estava encenando Madame Butterfly, com o tenor Carlo Butti. Pagamos 150 liras (30 cruzeiros em nossa moeda). Começou às 20:30, terminando às 23:30hs.”
“Após darmos uma passeada no local, seguimos, eu e o Morais, para outro lugar onde diziam que havia iniciado um baile com jazz. Chegando lá me dirigi para uma janela que dava de frente para a rua. Encostada na janela encontrava-se uma garota com uns 16 anos, loura, clara, olhos azuis, muito bonitinha. Conversei com ela, que se chamava Mercedes. Convidei-a para dançar. Ela recusou dizendo que não sabia dançar. Ficamos então de conversas até o baile terminar. Mercedes me convidou para ir na casa dela. Lá conheci seus pais e um irmão mais novo. Era uma casa de gente simples, porém direitinha. Ofereceram-me uma xícara de chá com um pedaço de bolo. Despedi-me depois de algumas conversas e fui embora.”

Portanto, o ‘diário’ do Sr. Villaça mostra que a experiência de um soldado em uma guerra pode ser muito mais complexa do que supõe a maioria de nós. Se quisermos dimensionar com riqueza a experiência desses 25.000 homens enviados à Itália em 1944, talvez devamos começar a dar mais atenção a esses acontecimentos considerados periféricos em uma guerra, por não se resumirem aos combates e estratégias. Essas “micro-histórias” vividas pelos pracinhas e não apenas as “macro-histórias” das grandes e épicas batalhas, merecem ser conhecidas e analisadas com mais calma, para que possamos continuar a relatar a façanha da FEB e a descobrir novos fatos que nos auxiliem a sempre escrevê-la e reescrevê-la. Enfim, esses ‘pequenos’ relatos, como o diário do Villaça, nos trazem realidades recheadas de surpresas e do cotidiano, mostrando o que a guerra de fato pode fazer com os homens e como eles realmente a fizeram.

Marcelo Sampaio e Paulo Eduardo Teixeira.

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