segunda-feira, 5 de outubro de 2009

A violência como tema dos vestibulares


A violência tomou proporções tão drásticas em nosso país que não há mais pessoas indiferentes aos seguintes assuntos: a pena de morte e a maioridade penal. De uma ponta a outra da sociedade, os debates esquentam o momento de reflexão que estamos vivendo atualmente. A indignação, a desesperança e o medo tomam conta do espírito dos brasileiros e apontam para um norte de ações radicais e de reformas legislativas. Frente ao infanticídio, somos quase todos levados ao horror e forçados (por uma força que vem dos sentimentos a flôr-da-pele) a nos questionarmos: como saímos dessa crise?

De fato não há como negar que estamos vivendo uma crise no universo da moral, da ética, da cultura, isto é, como diria Durkheim, “em nossas maneiras de pensar, sentir e agir coletivas”. Seguindo o pensamento do referido pensador, poderíamos dizer que a sociedade brasileira está reproduzindo há algum tempo uma consciência coletiva mórbida, isto é, doente e autodestrutiva. É preciso encontrar os indícios que nos levem aos lugares onde está instalada essa “patologia social”.

Perceber que o capitalismo contemporâneo é pulsional e infantilizante, e que produz uma educação e uma cultura para qual a atividade do pensamento é próxima a zero, pode ser o início de nossa busca. Reconhecer que, aliado a esse fato, nossos adolescentes estão impulsivos e ousados a ponto de realizarem malabarismos sociais que vão das comunidades do Orkut até a formação de quadrilhas criminosas, nos aponta um caminho. Apresso-me em afirmar que não acredito no aumento da punição como forma de equilibrar a sociedade. Precisamos abandonar a superfície dos fenômenos para chegarmos a essencial: o fenômeno da alienação.

Marx definiu a alienação no capitalismo como um estranhamento histórico entre o ser humano e o mundo produzido por ele. Como se a sociedade, e tudo que ela oferecesse a nossas vidas, se tornasse um ser estranho (com uma vida própria e independente de seus criadores) e se voltasse contra nós para nos explorar e pressionar. A alienação é o que vemos muitas vezes na vida de nossos adolescentes, repleta de oportunidades negadas e de uma contínua exclusão. Excluídos da família, da escola, do lazer, da profissionalização, do trabalho, enfim, da sociedade. Negamos todas oportunidades de “formação” a eles e os deixamos à mercê da miséria de um mundo alienado (‘desrealizado’) no qual, por não conseguirem a realização de suas vidas nos tecidos sociais “normais”, buscam uma realização fantástica no crime, no consumismo e na banalização da violência. Precisamos entender que nossos futuros cidadãos não querem somente comida, mas diversão e...nem pensem em religião.

As relações sociais alienadas (e alienantes) permeiam toda a sociedade e tem em nossas várias instituições sua fonte de reprodução e, por mais incrível que pareça, a Escola é uma dessas. Fazer o adolescente se sentir estranhado com seu próprio trabalho e, conseqüentemente, com seus produtos, é a especialidade do Ensino há algum tempo. Incluo aqui também, principalmente, as escolas da rede particular de ensino: o ensino pré-vestibular. Nesse caso, (lembremos novamente de Durkheim) a Escola não está cumprindo o papel que a sociedade espera dessa instituição, pois, não está “fixando de antemão na alma do jovem, certos sentimentos sociais reclamados pela vida coletiva”, a saber, a tolerância e a responsabilidade e a sociabilidade. Tentarei exemplificar o que digo a seguir, analisando as práticas de ensino de História de nossas escolas (particulares e públicas).

A alienação está prevista nos projetos educacionais escolares: pretender com livros didáticos (apostilas) abarcar todo o conteúdo da disciplina História, alinhando-o em uma seriação progressiva de acontecimentos repletos de “heróis” e da “memória da nação”, isso tudo bem distante do cotidiano dos alunos. A Antiguidade, Idade Média, Moderna e Contemporânea, ou mesmo, Brasil Colônia, Império e República, dessa forma expostos e “transmitidos”, desconsidera a vivência dos alunos, seus problemas e anseios. Dessa forma a História (e a história) se torna incompreensível e desinteressante para eles. Portanto, o estranhamento com mundo (no qual a história é parte fundamental) é reforçado na Escola em uma prática alienante que se inicia já nas salas de aulas, passando pela opressão das notas e do vestibular e acabando no fracasso escolar, na evasão e na criminalidade. O ensino da História que deveria fomentar cidadãos, ao contrário produz jovens descompromissados, irresponsáveis que, mesmo bem alimentados e cuidados, podem até chegar ao crime. Assim a Escola ajuda a reproduzir, por meio do seu fracasso em geral (entre ricos e pobres), uma sociedade mórbida e em crise. O objetivo de fazer os jovens saberem toda a História (ou outras “disciplinas”) por meio da “transmissão” de informações prontas e acabadas (nossos vestibulares são um exemplo desse fato) faz de nossos adolescentes pessoas passivas em relação à Escola, ao saber e, por fim, em relação a sociedade. Assim “aprisionado”, nosso jovem não se reconhece em seu ambiente escolar que é uma manifestação da sociedade que oprime, cobra e exclui, em uma palavra, aliena.

Talvez a Escola e a Educação pudessem ser instituições diferenciadas no conjunto dos tecidos sociais, cumprindo o papel que “reclama a sociedade”, se produzisse práticas desalienantes, isto é, fazendo o jovem participar ativamente do processo de aprendizagem, adquirindo a dignidade de sujeito desse mesmo processo, pois o essencial está na sua capacidade de aprender.
O Ensino desalienado pressupõe uma visão de História que não exige do jovem o conhecimento de toda a História da humanidade em todos os tempos, mas, a capacidade de reflexão sobre qualquer momento da história. Pressupõe também o desaparecimento do Ensino feito por “gurus” profissionais (bem ao gosto do ensino médio pré-vestibular) e a construção de uma Escola feita de professores mediadores, isto é, aqueles que aceitam a contingência radical da experiência pedagógica se desfazendo do “ensino carismático”. A posição do professor é muito arriscada: está sempre a um passo de tornar-se guru, de assenhorear-se do lugar do mestre e manter os alunos, para sempre, na condição de discípulos desinteressados e alienados. Nesse caso, não se pode esquecer que o diálogo do jovem não deve se travar com seu professor, mas com a sociedade, o saber e sua vida cotidiana, “conteúdos que não caem nos vestibulares”. O diálogo do jovem deve ser com o pensamento, com a cultura corporificada nas obras e nas práticas sociais (mediado pelo professor).

Portanto, vimos que o combate a alienação não deve se dar apenas na esfera econômica ou na esfera política imediata, precisando de uma percepção mais abrangente de sua atuação e de uma análise mais detalhada de suas manifestações. Segundo Marx, é sempre preciso partir das aparências para chegarmos a essência dos fenômenos sociais. A aparência é a violência de nosso adolescente e a sua essência é a alienação social presente, inclusive, na Escola. Ser há algo de errado em nossa “consciência coletiva”, Durkheim nos lembra que pode haver também algo de errado em nossa Educação. Não podemos querer ou aceitar uma Escola alienante. Marx e Durkheim, apesar de divergirem radicalmente, sempre acreditaram e defenderam uma mesma idéia: o trabalho com as relações sociais é (e sempre será) a base de todos os nossos problemas e soluções. Enquanto isso, atenção: a violência será sempre “tema de redação e questões” nos vestibulares.

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