segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Irmãos de Armas!




O trabalho do profissional que cuida do resgate da memória e da sua preservação não é reconhecido e valorizado como deveria em nosso país. Talvez por não ser bem compreendido em seu início pela maioria das pessoas, o relembrar épocas, acontecimentos, enfim, a passagem do tempo, pode tornar-se bastante inglório.

Afinal, vivemos em um país desacostumado a dar a devida importância as suas lembranças, deixando sempre em segundo plano a compreensão do passado em prol de uma vida focada apenas no tempo presente. Será que o nosso passado é tão feio, cheio de erros, frustrações e injustiças que é melhor o esquecermos? Será que ele é desinteressante? Penso que não.

Se nós aprendemos com nossos erros pessoais, por que não aprendemos também com nossos “erros” coletivos, fenômenos esses de outra ordem, mas com a mesma raiz? Na verdade, há sempre bons exemplos a seguir do ontem para o hoje. Infelizmente, hoje somente os profissionais da História defendem essa postura, deixada de lado por boa parte de nossos meios de comunicação. Na contramão do que faz a sociedade brasileira, os professores de História ainda defendem a nossa memória, seja ela produto de nossa história remota ou recente. Esses professores afirmam-na, não por uma questão corporativa (a defesa de sua profissão), mas por acreditarem serem os únicos porta vozes de pessoas que talvez nunca pudessem falar de outra maneira. Ensinando-nos que devemos ainda nos espantar e também nos encantar após alguns anos passados, os historiadores são especialistas em dar voz aos esquecidos, isto é, àqueles que desapareceram do horizonte da história. Afirmar a importância da história da FEB (Força Expedicionária Brasileira) se insere nesse contexto descrito acima, especialmente quando falamos da memória de seus soldados rasos, os “pracinhas”. Apesar de muito já ter sido produzido sobre a memória da FEB, pouco foi escrito sobre os soldados. Será possível encontrarmos uma outra forma de contarmos essa história? Pensamos que a única forma de mudarmos esse estado de coisas é darmos voz aos soldados publicando seus relatos de experiência. Dar voz àqueles que só apareceram até agora na literatura como tropa, isto é, como um conjunto de pessoas sem identidades pessoais, é oferecer ao público talvez uma outra 2ª Guerra Mundial, uma outra FEB um outro Brasil nos anos 40. Quem sabe? Porém, se esses soldados foram realmente heróis, e de fato foram, por que ainda pouco se fala e se escreve a respeito deles fora do Exército Brasileiro? Por que ainda são esquecidos pela maioria de nós? De fato, ainda não decidimos dar voz e eles. Cabe aqui uma breve reflexão a respeito.

Nos EUA e na Europa os veteranos da Segunda Guerra são freqüentemente lembrados e celebrados seja na literatura, no cinema ou em inúmeros eventos cívicos e monumentos. Hollyood já teve no cinema de guerra suas maiores bilheterias. No Brasil, porém, há um profundo silêncio sobre nossa participação nesse grande conflito, apesar de o país ter sido o único da América Latina a participar efetivamente dos combates. Qual será a razão, ou as razões, desse esquecimento por parte dos brasileiros? É fato que aqui em nosso país temos um tratamento pouco respeitoso com nossos ex-combatentes, especialmente aos de baixa patente militar (chamados “carinhosamente” de pracinhas). Estes, após o fim das comemorações em 1945, tiveram uma vida dura de indiferença com relação as suas histórias pessoais e sofrimentos. Como podemos explicar isso? Cabe ao profissional de História cavoucar nos montes de entulhos deixados pelo tempo (e pelo desinteresse da sociedade) fatores que possam explicar essa situação.

De fato, a experiência da Grande Guerra não ecoou na sociedade brasileira como ocorreu no EUA e Europa. O impacto social do retorno dos veteranos brasileiros não teve a mesma relevância positiva, ou negativa, quando comparado ao que aconteceu em outras sociedades dessa época e que se envolveram no conflito. A lembrança da guerra em nosso país é quase que somente preservada pelos veteranos e suas família, pelos aficionados no assunto e pelas comemorações oficiais das Forças Armadas e prefeituras de pequenas cidades, essas sempre assistidas por um público de poucas pessoas. Essa é uma indiferença que se torna inexplicável quando lembramos que os soldados brasileiros foram cidadãos que colocaram suas vidas em risco com a certeza de que defendiam seu país, da mesma forma que o fizeram os norte-americanos, ingleses, canadenses etc. Foram mobilizados 25.000 cidadãos dos quatro cantos do Brasil para a formação de uma divisão de combate (a FEB), entre eles lavradores, comerciantes, operários, professores, estudantes, profissionais liberais, que abandonaram suas respectivas carreiras e vidas, para atuarem além-mar, na certeza de defenderem maneiras de pensar, sentir e agir de seu povo. Penso que, independentemente do que ocorreu nos combates, somente o abandono de suas famílias para a defesa de algo considerado sagrado já foi um ato que mereceria a lembrança e a celebração de muitos por aqui. Aliás, muitos desses soldados foram voluntários e muitos não voltaram.

A indiferença brasileira talvez possa ser explicada por meio de alguns números: os EUA mobilizaram 16 milhões de combatentes durante a Guerra Mundial e o Brasil apenas 25.000. Questões geográficas também podem ajudar a explicar a situação em questão: a Europa foi diretamente afetada como palco da guerra e, em nosso caso, enviamos nossos homens ao além-mar. Nesse caso, ao contrário do Brasil, os europeus foram um povo fortemente afetado pela guerra, não havendo família desse lugar que não tivesse algum membro ou parente participado do conflito. No nosso caso, são poucos os veteranos em nosso meio, considerando-se a população total do País. Nos EUA, por exemplo, pode-se ter, eventualmente, um ex-combatente como vizinho e, não é difícil, tê-lo sob o mesmo teto. Aqui no Brasil, porém, os encontramos em menor número espalhados pelo território. Talvez essa realidade seja um fator explicativo para a nossa falta de atenção com os ex-combatentes.

Entretanto, pensamos que há outros fatores que também merecem a nossa análise devido ao poder elucidativo que podem ter na explicação da nossa indiferença com a FEB e seus ex-combatentes. A Força Expedicionária Brasileira trouxe da Europa duas espécies de veteranos: os que seguiram na corporação como oficiais, beneficiando-se de suas experiências na Itália e participando posteriormente de articulações políticas dentro e fora dos quartéis, e aqueles que seriam desligados do Exército e rapidamente enviados para casa, isto é, os ‘praças’. Estes últimos foram também rapidamente esquecidos pelo governo que trabalhou com o objetivo político consciente de alargar essa indiferença para o resto da sociedade brasileira.

Preocupado com os desdobramentos políticos da presença no País de uma tropa que havia combatido e ajudado a derrotar duas ditaduras na Europa, Getúlio Vargas (líder de uma ditadura desgastada) ordenou a imediata desmobilização da divisão expedicionária. Temendo talvez o poder que uma tropa moderna, com experiência real de guerra, poderia oferecer a um governo frágil frente a interesses militares contrários, ou mesmo temendo que um imenso contingente militar de elite feito de elementos do povo (com armamentos e treinamento dos EUA, isto é, da melhor escola militar do planeta) significasse uma oposição social a seu governo, enfim, Vargas, que outrora havia ajudado a criar a FEB, agora dava o pontapé inicial para o esquecimento de seus membros mais corajosos e sofridos. Como conseqüência dessa ação, o governo apenas pagou um soldo correspondente aos dias de participação dos soldados na guerra e a passagem de volta para suas respectivas cidades para depois esquece-los logo em seguida. Em uma situação como essas, na qual a maioria desses homens precisava ter a garantia do retorno as suas atividades profissionais e familiares, alguns desses até mutilados e com neuroses de guerra, nossos ex-combatentes ficaram entregues a própria sorte.

Portanto, na defesa de interesses “nacionais”, nosso governo federal criou uma tropa especial capaz de acompanhar o maior exército do mundo em uma guerra moderna, isso tudo em território estrangeiro extremante hostil (montanhoso e com inimigos poderosos) tendo como base os cidadãos mais simples que sofreram uma abrupta e penosa transformação para se tornarem soldados especializados. Posteriormente, esse mesmo governo a desmobiliza após meses de combate e três dias de desfile sem uma política de valorização de seus veteranos. Para qualquer observador comum, haveria uma incongruência nessas duas atitudes. Porém, quando o assunto em questão são as artimanhas do uso do poder no Brasil pelos grupos sociais dominantes e seus representantes, tudo fica inteligível e a incompreensão desaparece. Utilizar nosso povo como ferramenta humana para a realização de projetos políticos, nos quais esse mesmo povo não participou da construção, é um fenômeno comum em nossa história.

Infelizmente o que aconteceu com os pracinhas da FEB foi mais um exemplo disso. O sonho nacionalista de Vargas foi por água abaixo e os pracinhas “pagaram o pato” do esquecimento. O Exército não teve atitude muito diferente: manteve apenas alguns contingentes expedicionários de baixa patente na ativa (tenentes, capitães e majores) para o treinamento de tropas nas escolas militares. Somente no início dos anos oitenta do século passado, os pracinhas começariam a receber uma pensão como direito pago pelo governo. Atualmente são lembrados apenas nas poucas comemorações militares e municipais.

Voltando a falar da realização de projetos políticos no Brasil, nos quais o povo não participa, a FEB também participou das estratégias traçadas pelos grupos sociais dominantes para chegarem e se manterem no poder. A oficialidade média da FEB, composta por majores e tenentes-coronéis integrantes do Estado Maior e do Serviço de Inteligência do corpo expedicionário (pessoas que ficavam há quilômetros de distância dos combates, comandando as operações) alavancaram suas carreiras de forma meteórica após o conflito. Fizeram isso por convicção pessoal e por acreditarem em uma missão: que somente o comando das Forças Armadas poderia colocar o Brasil no caminho do progresso econômico e social. Como em outros momentos de nossa história, novamente o Exército queria tomar a frente nas decisões nacionais. Os ex-febianos de alta patente militar ajudaram a eleger Eurico Gaspar Dutra (ministro da guerra de Vargas) como presidente e, após a eleição de Vargas, ficaram bem mais próximos do poder federal. A convivência com o US Army na Itália criou nesse grupo os ideais democráticos (que tanto foram utilizados na derrubada da ditadura de Vargas), ajudou a construir para esses homens um plano nacional-desenvolvimentista com ênfase na participação do capital externo e reforçou o anticomunismo em seus corações. Coincidência ou conseqüência, essa mesma oficialidade egressa da FEB participaria ativamente (alguns no comando) do golpe militar de 1964 (sobre o governo João Goulart), que instituiria uma ditadura militar de “direita” de 21 anos de duração. Portanto, a integração social dos veteranos da FEB se deu de duas formas distintas: uma foi o esquecimento coletivo de seus pracinhas iniciado por Vargas, e a outra foi a tomada do poder político no Brasil por meio de sua oficialidade anos após o suicídio desse mesmo presidente.

A chegada ao poder da oficialidade egressa da FEB poderia ter sido o momento da redenção de seus pracinhas que, esquecidos até aquele momento, teriam agora na ditadura militar seus velhos companheiros de armas no comando. Porém, esse companheirismo de farda não suportou o passar dos anos e as mudanças de planos do comando de nosso Exército de 1945 até 1964. Durante o regime militar, nada foi feito efetivamente para melhorar a condição social de nossos ex-combatentes. Tudo o que nosso Governo Militar fez pelos soldados febianos foi lembrar deles por meio da publicação de inúmeros livros a respeito de nossa campanha na 2ª Guerra Mundial.

Esse fato, mesmo sendo louvável, pois tais publicações tocavam no assunto da preservação da memória dos combatentes, não garantiu o esperado e merecido reconhecimento público dos praças. Divulgando uma história exageradamente gloriosa e heróica de seus ex-combatentes (portanto distorcida) com o objetivo indireto engrandecer a história do próprio Exército e de seus comandantes, nossos generais e coronéis ajudaram a consolidar uma falsa imagem da FEB. Para essa literatura, nossa cobra só fumou na Itália por causa das qualidades excepcionais de seus comandantes que, com muita coragem e espírito patriótico, foram os maiores responsáveis pelas vitórias brasileiras. Portanto, sem a presença onipresente e onipotente de nossos “Estado-Maiores”, segundo essas publicações da Bibliex não teríamos sido heróis na guerra. Com a divulgação dessas “heróicas” histórias, o Exército envolveu a memória dos pracinhas em um amontoado de fatos mal contados para destacar a atuação dos seus comandantes na vitória final dos conflitos. Na Europa nossos soldados ficavam a frente do comando e na literatura do Exército os mesmos ficaram atrás dos grandes ícones de alta patente.

O regime de 1964 gerou um péssimo relacionamento entre civis e militares, principalmente por causa dos julgamentos sumários, perseguições e prisões a que nosso povo foi alvo por parte de “nossas” Forças Armadas. A partir disso, foi construída uma justificável falta de identificação entre o cidadão comum e o militar no Brasil, pois esse terrorismo oficial foi terrível e traumático. Após, inclusive, a ameaças de mortes injustificadas durante esse período, ficou difícil para o cidadão comum se identificar com os valores específicos do Exército. Nossos intelectuais, responsáveis por pesquisar e socializar a história de nosso país, mas também perseguidos pelo regime, se perguntavam nesse momento: para que lembrar a história de uma corporação que, ao invés de proteger seu povo e defender as instituições democráticas está mantendo-os em “ordem” por meio da força, usurpando a República? Esse fato levou ao esquecimento acadêmico do Exército e de sua história, incluindo aí um de seus capítulos mais recentes: a FEB. Entretanto, apesar dessa indiferença acadêmica plenamente explicável, nossa historiografia não deixou totalmente de produzir material sobre esse tema.

Interessada em criticar o regime militar de 1964, nossa historiografia buscou desclassificar de várias formas os comandantes da FEB jogando-os junto com seus praças no domínio do insignificante. Nesse contexto, destaca-se a interpretação marxista que vê exclusivamente o Exército como o defensor histórico do Estado e da sociedade capitalista, garantindo a manutenção da ordem interna e a conquista externa de mercados por meio do uso da força (história ensinada nas escolas). Essa postura docente ensina a memória da FEB como um grande exemplo da exploração do povo (convocado em todo o Brasil e mal treinado para ser jogado em uma guerra com pouca ou nenhuma vinculação com a história de sua vida) feita por um Estado a serviço do capitalismo e a serviço da política e dos interesses imperialistas dos EUA. Acrescente-se que, nós professores ainda defendíamos que a FEB pouco havia participado do conflito na Europa, em campanhas insignificantes e sem importância para os destinos do conflito quando comparadas ao “Dia D” ao “Cerco a Stanligrado”. Pensávamos estar a serviço de uma ciência crítica que promovia o resgate da visão marxista da história, mas, na verdade, estávamos ajudando a afundar ainda mais nos entulhos do tempo a memória dos cidadãos ex-combatentes (pessoas autenticamente do povo) vangloriando, por outro lado, os feitos heróicos dos soldados do exército vermelho. Atualmente, nossa opinião é bem diversa dessa que foi nossa postura no passado, influenciada por professores que pouco investigaram ou analisaram a FEB sob a ótica de seus combatentes ou sobre o ponto de vista do resgate de suas memórias como fonte de reinterpretação da história do protagonismo de nosso povo e de seus dramas. Infelizmente fomos educados por pessoas que pensavam estudar os anos 40 no Brasil, mas que nunca deixaram os meados dos anos 60. Pensamos que temos agora uma dívida a pagar para essa gente simples que foi colocar suas vidas em risco em nome de um país e que tiveram sua história muito mal contada até hoje. Precisamos deixá-los falar.

Para ouvir as vozes dos esquecidos, cabe ao profissional de História nadar contra a maré, cavoucando nos montes de entulhos deixados pelo tempo (e pelo desinteresse da sociedade e, às vezes até mesmo das famílias), e no lixo produzido pela “contra-informação” acadêmica e militar, registros e relatos de acontecimentos que mereçam atenção e forneçam aprendizado. É preciso ir para o passado e, embaixo de várias camadas do tempo, achar o discurso das pessoas simples que, apesar de terem passado por inúmeras provações e perigos e por todas as brutalidades e mutilações, enfim, por todos os traumas de uma guerra, conseguiram fazer parte de uma tropa de elite muito acima das capacidades militares, psicológicas, físicas do brasileiro comum dos anos 40. Tudo isso por acreditarem que seriam úteis para a defesa de um país que há muito tempo não lhes dá a devida importância. Se nós sempre torcemos e nos emocionamos com nossos esportistas que também acreditam defender o nosso país, mas sem colocarem em risco suas vidas, não será difícil dar valor ao registro histórico dos ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial. Basta indagar: Onde estão nossos “heróis de Guerra”? Infelizmente a esmagadora maioria deles já não está entre nós, só restando mesmo o contato com seus “diários de guerra”, a lembrança das famílias e a vontade dos historiadores em transformar tudo isso em material rico em memória.

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