domingo, 6 de novembro de 2011

Kant, o Dever, a bondade e a liberdade

“Age de modo que consideres a humanidade tanto na tua pessoa quanto na de qualquer outro, e sempre como objetivo, nunca como simples meio.”
Immanuel Kant

A moral kantiana baseia-se num princípio formalista: o que interessa na moralidade de um ato é o respeito à própria lei moral, e não os interesses, fins ou conseqüências do próprio ato. Uma boa vontade, guiada pela razão age em função de um imperativo categórico (dever ).
Kant procurou demonstrar que era possível formular para a moral leis universais como as do conhecimento científico. Estas leis tinham que ser formuladas à priori, isto é, sem levarem em conta os atos efetivamente praticados, quer fossem bons ou maus. O legislador supremo da moralidade é a razão humana.
O SER HUMANO, A LIBERDADE E O DEVER:
O ser humano é um ser marcado por uma dualidade: é, por um lado, um ser sensível, isto é, um ser da Natureza, condicionado pelas suas disposições naturais, que o levam à procura do prazer e à fuga da dor. Este aspecto primário define o egoísmo que preside à vertente animal do ser humano. Por outro lado, é um ser racional, isto é, alguém capaz de se regular por leis que impõe a si mesmo. Tais leis revelam a sua autonomia, tendo a sua sede na razão. São leis morais que o levam a praticar o bem, em detrimento dos seus caprichos e interesses individuais. Assim, o ser humano é um ser dividido entre a sua inclinação para o prazer e a necessidade de cumprir o dever. Tanto se pode deixar arrastar pelos seus instintos, como determinar-se pela razão.
Ao contrário do animal, que está determinado a agir desta ou daquela maneira, o ser humano possui uma margem de liberdade, podendo agir de acordo com princípios que impõe a si mesmo. Só podemos, portanto, falar em moralidade se considerarmos que o ser humano é um ser livre. É essa liberdade que lhe confere dignidade.

A BOA VONTADE / A BOA INTENÇÃO: A MORALIDADE
A moralidade é concebida independentemente da utilidade ou das conseqüências que possam advir das ações. Ter saciado a fome de trinta pessoas ou apenas de uma é irrelevante para aferir a moralidade destes atos. Tudo depende da intenção com que as ações em causa foram realizadas. Ora, a intenção é o que caracteriza a vontade. A uma boa vontade corresponde uma boa intenção. A intenção moral só é conhecida pela consciência do indivíduo.
O DEVER E A BOA VONTADE
A vontade é boa quando age por dever. O conceito de dever contém em si o de boa vontade, como diz Kant. O dever será uma necessidade de agir por respeito à lei que a razão dá a si mesma. Mas, antes de nos referirmos a essa lei, é preciso ter em conta o seguinte:
Uma ação pode ser conforme ao dever e, no entanto, não ser moralmente boa. A pessoa pode agir de acordo com o dever, mas movida por interesses egoístas. É o caso da atitude daquele comerciante que é honesto para com os seus clientes apenas para ter mais lucros. Ele não engana, não rouba, não viola as leis. Exteriormente, a sua ação está de acordo com o que deve ser feito. Mas, ao fazer tudo isso a fim de promover o seu próprio negócio, este comerciante não agiu moralmente bem. A sua ação foi apenas um meio para atingir um fim pessoal.
Segundo Kant, não agiu por dever e, portanto não agiu moralmente bem. O valor moral de uma ação reside na intenção. Daí que seja importante distinguir moralidade de legalidade. Se a moralidade caracteriza as ações realizadas por dever, a legalidade caracteriza as ações que estão em conformidade com o dever, mas que podem muito bem ter sido realizadas com fins egoístas.
Segundo Kant, é, portanto, o sentimento do dever, o respeito pela lei moral, que nos deve determinar a agir.
Agir por dever exige um conhecimento das regras, das normas, a que se tem de obedecer. Que regras são essas? Não se trata de saber se devo mentir ou não devo; trata-se de encontrar o que está na base da minha opção pela mentira ou pela honestidade.

A MÁXIMA E A LEI ÉTICA:
É por isso que Kant distingue máximas de leis éticas. As máximas são os princípios subjetivos da ação, os princípios concretos segundo os quais agimos. São consideradas pelo sujeito como válidos apenas para a sua vontade. As leis éticas, por sua vez, são objetivas, isto é, são consideradas como válidas para a vontade de todo o ser racional, enunciando a forma como se deve agir.
Neste sentido, podemos afirmar que só a máxima que se possa tornar uma lei universal é que possui valor ético, isto é, se a máxima se puder universalizar, se puder ser válida para todos, ela converte-se em lei moral. Escreve Kant: "Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal."
*devemos agir pela honestidade (como um dever da razão, como algo em que acreditamos) e não em conformidade com a honestidade (isto é, estimulado por outro valor não moral, algum interesse) esperando alguma conseqüência com o ato).

A LIBERDADE:
Cada indivíduo, enquanto ser racional é autor das leis que impõe a si mesmo. A lei ética, universalmente válida, tem origem na razão. Sendo assim, cada indivíduo é legislador e responsável por aquilo que faz. A moralidade pressupõe, portanto, a autonomia da vontade. Numa palavra, pressupõe a liberdade.
E em que medida é que o indivíduo é autônomo? Autonomia em face de quê? É autônomo na medida em que é capaz de agir independentemente das leis da natureza. De fato, na natureza tudo se encontra determinado. As leis físicas expressam esse determinismo. Em contrapartida, no reino da ética existe a liberdade. O ser humano é livre sempre que se submete às leis da sua própria razão. Nesse caso, não somos livres quando fazemos aquilo que nos apetece, mas sim quando cumprimos o nosso dever, ou seja, quando nos submetemos à lei moral que existe em nós.

sábado, 11 de dezembro de 2010

A arte e o consumo: Benjamin e Adorno.


Em 2010, a televisão brasileira completa 60 anos de existência. Nos meses de setembro e outubro foi comemorado esse aniversário em vários eventos, incluindo neles o Museu da América Latina em São Paulo.

Tendo em vista a importância desse fato e a possibilidade dele ser tema de redação dos vestibulares, apresento de maneira sucinta aos meus alunos as análises de Benjamin e Adorno (Escola de Frankfurt) sobre a Arte Tecnológica (ou técnica) na qual pode ser inserida a invenção e desenvolvimento da televisão. Penso ser útil lembrarmos das ricas contribuições desses ilustres pensadores acerca da Arte na Era das técnicas industriais de produção e difusão das imagens e dos sons.

De Walter Benjamin, se deve destacar reflexões sobre as técnicas de reprodução da obra de arte, particularmente do cinema, e as conseqüências sociais e políticas resultantes. De Adorno, o conceito de “indústria cultural” e a função da obra de arte no interior da sociedade de massas.

Benjamin, no ensaio “A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução” publica a primeira grande teoria materialista da arte. O ponto central da teoria de Benjamin está na análise das causas e conseqüências da destruição da “aura” nas obras de arte, enquanto objetos individualizados e únicos. Com o progresso das técnicas de reprodução, sobretudo da fotografia e do cinema, a aura, dissolvendo-se nas várias reproduções do original, destituiria a obra de arte de seu status de raridade. Para Benjamin, a partir do momento em que a obra fica excluída da atmosfera aristocrática e religiosa, que fazem dela uma coisa para poucos e um objeto de culto, a dissolução da aura atinge dimensões sociais e democráticas. Essas dimensões seriam resultantes das transformações técnicas da sociedade industrial que obrigatoriamente modificariam a percepção estética da população. A fotografia e a fonografia modificaram profundamente a maneira da população se relacionar com as imagens, sons, enfim, com a Arte. Segundo Benjamin, a perda da aura e as conseqüências sociais resultantes desse fato seriam particularmente sensíveis no cinema, no qual a reprodução de uma obra de arte carregaria consigo a possibilidade de uma radical mudança qualitativa na relação das massas com a Arte. O cinema que apresenta um popular (Carlitos) como seu objeto e não mais santos, reis e ricos burgueses.

Em suma, a análise de Benjamin mostra que as técnicas de reprodução das obras de arte, provocando a queda da aura, promovem a liquidação do elemento tradicional da herança cultural; mas, por outro lado, esse processo contém um germe positivo, na medida em que possibilita outro relacionamento das massas com a arte, dotando-as de um instrumento eficaz ( a Arte para as massas e pela as massas ) de renovação das estruturas sociais.

Essa postura otimista de Benjamin com relação ao cinema, foi objeto de reflexão crítica por parte de Adorno ao analisar a televisão e o rádio nos EUA. Adorno pensará a Arte tecnológica através do conceito de indústria cultural.

Adorno, em 1962, substituiu em seus escritos o conceito de cultura de massa pelo conceito de indústria cultural. O objetivo do filosofo foi o de esclarecer seus leitores sobre o engodo presente na idéia de uma cultura própria das massas, como se da população brotasse espontaneamente um conjunto de valores, idéias e estética. Para Adorno, que não concorda com essa interpretação, a indústria cultural (por meio da tv e do rádio), ao aspirar à integração da sociedade como sendo feita apenas de consumidores, não apenas adapta suas mercadorias ao consumo das massas, mas, em larga escala, determina como deve ser próprio consumo, isto é, produz também o consumidor, colocando-o no lugar do cidadão. Interessada nos homens apenas enquanto consumidores ou empregados, a indústria cultural reduz a sociedade, assim como cada um de seus elementos, às condições que representam seus interesses: vender produtos, realizando a mercadoria para milhões de consumidores, transformando a sociedade (feita de cidadãos) no simples mercado (feito apenas de consumidores).

Segundo Adorno, para realizar os objetivos descritos acima (sintetizados em uma verdadeira estratégia de dominação social), a indústria cultural ajuda a falsificar as relações entre os homens, bem como dos homens com a natureza, de tal forma que sua atitude frente a sociedade torna-se antiiluminista.

Considerando que o iluminismo tem como finalidade libertar os homens do medo, tornando-os senhores de si e do mundo, liberando o mundo da magia e do mito, e que ele admite que essa finalidade só possa ser atingida por meio da ciência e da tecnologia, as luzes da Razão instaurariam o poder do homem sobre a ciência e sobre a técnica e sobre o mundo.

Mas ao invés disso, livre do medo mágico, o homem tornou-se vítima de novo engodo: a dominação técnica. Essa dominação transformou-se em um poderoso instrumento utilizado pela indústria cultural para conter o desenvolvimento da consciência das massas. A indústria cultural impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente. Criando “necessidades” ao consumidor (que deve contentar-se com o que lhe é oferecido), a indústria cultural organiza-se para que ele não compreenda sua condição de mero consumidor, ou seja, que ele é apenas e tão-somente um objeto daquela indústria.

Portanto, o conceito de técnica de Benjamim seria problemático, pois conceberia a técnica (tecnologia) de maneira absoluta, esquecendo-se suas raízes históricas e de suas determinações sociais (expressas nas estratégias de dominação).

Ao visarem à produção em série e à homogeneização das “obras de arte”, as técnicas (tecnologias) de reprodução escondem as relações entre a entre o caráter da própria obra de arte industrial e do sistema social que a produziu. Portanto, se a técnica passa a exercer imenso poder sobre a sociedade, só foi possível devido às estratégias de dominação dos economicamente mais fortes sobre a própria sociedade. Para Adorno, a racionalidade da técnica identifica-se com a racionalidade do próprio domínio. Essas considerações evidenciariam que, não só o cinema, como também o rádio, não devem ser tomados como arte, pois seriam apenas técnicas de dominação da sociedade capitalista avançada, ou seja, não seriam mais que negócios. Nesse caso, seriam apenas ideologias. Enquanto negócios, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada exploração de bens considerados culturais. Tal exploração Adorno chama de “indústria cultural” e a tv seria um dos mais importantes meios dela.

domingo, 7 de novembro de 2010

A Física e a Educação


Um dos sonhos mais almejados pelo “ocidente” foi o da elaboração do conhecimento científico. O saber verdadeiro, infalível, útil e capaz de prever acontecimentos para melhor adequar a vida das pessoas com elas mesmas e com o mundo, foi o objetivo de vários pensadores durante vários anos. A teoria que orientaria a prática sem descontinuidade, produtora de tecnologias, enfim a Ciência. Através de procedimentos historicamente consagrados, denominados de racionais e empíricos, a construção da Ciência conquistou novas áreas de trabalho e, há séculos, desenvolve e consolida as várias disciplinas escolares desde a Física.

Produzindo saberes sobre o mundo, vivido e construído por uma sociedade oriunda dos gregos, do Renascimento, das revoluções sociais e do capitalismo industrial, a atitude científica chegou a debruçar seus olhares sobre a política e o comportamento humano. A conquista dessa fase da Ciência foi a principal luta dos cientistas durante o século XIX. Aproximar a Física dos estudos sociais e psicológicos significava introduzir a atitude científica nos debates sobre a ética, a moral, o crime e o governo, áreas ainda dominadas por saberes não científicos, isto é, os filosóficos (argumentativos) e os religiosos (as crenças no sobrenatural e a fé).
Coube a Auguste Comte o pioneirismo na elaboração da primeira tentativa de aproximação entre a Física e a Política. Em uma obra intelectual ampla e complexa, Comte propôs a fundação da Ciência Social, chamada por ele de Física Social. Nessa nova disciplina científica, o ocidente finalmente completaria seu sistema científico do conhecimento humano produzindo pesquisas ‘úteis e verdadeiras’, como as feitas pelos Físicos, sobre tudo e todos.

Para tanto, Comte afirmou ser necessário desvincular as análises sociais do universo da economia, tradicional campo dos debates políticos até aquele momento, para direcioná-las à sociedade na busca de seus mais fundamentais fatos e de suas mais gerais leis de funcionamento. Era preciso adotar a postura do Físico, que analisa o movimento mais regular de um fenômeno para extrair daí o conhecimento de sua dinâmica fundamental, abandonando a postura do crítico, do anarquista, do belicoso, do aventureiro, do poeta, do sonhador etc.

Feito isso, o método da Física Social seria idêntico, em suas características, ao método da Física. A Sociologia se tornaria uma Ciência por renunciar aos pontos de vista transcendentais e agressivos da argumentação e da fé.

Comte, elaborando a Física Social, deu uma grande contribuição não só ao campo da Ciência Social, mas também às reflexões epistemológicas, isto é, àquelas voltadas a caracterização do conhecimento científico e daquilo que chamamos de ‘verdade’, ou seja, à Teoria do Conhecimento. Na busca pela elucidação e apresentação didáticas do método fundador da Sociologia, Comte fez uma ampla e importante análise sobre os pilares do conhecimento científico. Essas análises comteanas, esquecidas por muitos professores, servem como belas aulas de epistemologia até nossos dias. Arrisco a dizer que depois de Kant, Comte foi o melhor analista do conhecimento científico e de suas possibilidades e alcances. Desculpem-me os nobres colegas professores de Sociologia e de Filosofia do Ensino Médio que discordam do que digo.

Na definição do método científico e de seu alcance teórico e prático, tal como a fez Comte, destaca-se a “verdadeira observação”. Considerada a única base possível de conhecimentos verdadeiramente acessíveis, a observação se baseia em provas, pois, raciocinar conforme princípios confusos que não comportam qualquer prova suficiente só nos levaria a debates sem saída. Vamos dar um exemplo desse princípio metodológico pensando a Educação.

Muita gente argumenta que a Educação tem como objetivo desenvolver, em cada indivíduo, toda a perfeição de que ele seja capaz. Outros afirmam que ela teria como função fazer do indivíduo instrumento de sua felicidade. Dois bons e populares argumentos baseados em crenças que nutrimos a respeito daquilo que imaginamos ser a Educação, enfim, artigos de fé. Porém, a atitude científica baseada na observação e nas provas chega a outras conclusões a respeito da Educação. Seria de fácil constatação pelo cientista observador dos fatos e das provas da história que a Educação é uma instituição que socializa maneiras de pensar, de sentir e de agir da sociedade na qual ela existe e que funciona, cumprindo o papel de formar nos indivíduos os cidadãos conforme as determinações sociais. Ao lado dos princípios confusos de felicidade ou de perfeição, a observação científica traz conhecimentos verdadeiramente acessíveis sobre as instituições educacionais e seus papéis em cada sociedade e época da história.

É preciso ver, é preciso ver para saber, portanto, toda a proposição teórica que não seja redutível ao simples enunciado de um fato não pode oferecer nenhum sentido real e inteligível. Nesse caso não podemos imaginar, não podemos argumentar para conhecer. Precisamos ver para crer! Precisamos provar!

Porém, o que podemos ver? O que é passível de observação e, portanto, passível de conhecimento? Comte nos explica que a Física já demonstrou o que poderíamos ver. Para tanto, isto é, para ver, precisaríamos substituir na produção do conhecimento social a inacessível determinação das causas dos fenômenos pelas pesquisas de suas relações constantes e observadas. Quer se trate dos menores ou dos maiores efeitos do choque ou da gravidade, do pensamento ou da moralidade, da ética ou da política, deles só podemos conhecer as diversas ligações mútuas próprias à sua realização sem nunca penetrar no mistério de sua produção. Voltemos a Educação para demonstrar essa postura.

Por que existe a Educação? Qual é a sua causa primeira e final? Por que ela existe? Argumentam alguns que ela existe, pois precisamos fazer algo de nós mesmos e precisamos fazer algo pelo mundo, ou seja, há uma missão transformadora na natureza humana com fundamento religioso ou existencial. Porém, considerando a Educação em várias épocas e em vários países, isto é, a Educação como um fenômeno observável e constatável, ela é uma relação necessária entre gerações adultas com gerações inaptas a vida social, é a transformação de crianças em seres sociais completos, ativos, produtivos, solidários e passíveis de integração social em uma dada sociedade. É uma relação de autoridade sem a qual as sociedades não nasceriam, não se desenvolveriam e não se manteriam vivas. Resumindo, é isso que podemos realmente conhecer a respeito da Educação e de sua existência, bem como sobre suas causas e destinos, pois ela nunca apareceu de forma diversa.

Fazendo assim, Comte defende o que ele chamou de atitude positiva, que é a defesa do conhecimento da verdade como o conhecimento do ‘real observável’ e não do quimérico, da atividade útil e não dos argumentos e crenças que levam o homem a ociosidade dos debates, da certeza ao invés da indecisão, do preciso substituindo o vago, da ação técnica e tecnológica do governante e não das bravatas ou anarquias dos políticos, filósofos ou mesmo religiosos.

Porém, será que pensar, conhecer, saber a verdade está circunscrito a apenas a atividade do cientista? Para Comte, o Físico defende a função do pensamento como a de um colecionador, isto é, de colecionar, compreender e ordenar os fatos, sem nada querer saber sobre aquilo que possa vir antes dos fatos. Será que a há realidade além ou aquém dos fatos, isto é, naquilo que não é passível de observação ou verificação? Nosso pensamento é livre e propositivo ou meramente receptivo?

Os Físicos não costumam responder a essas perguntas e Comte, como um admirador dessa ciência também não respondeu. Porém a pergunta fica. Já que sabemos por onde a Ciência constrói seus conceitos e como demonstra a verdade, a exemplo de como a Física Social explica a Educação, será o conhecimento científico ensinado a nós há séculos, uma relação de autoridade necessária entre gerações adultas e infantis em um tipo histórico de sociedade? Como será que Ciência se explica? Vamos observar?

domingo, 29 de agosto de 2010

O saber e o agir


A Sociologia e suas análises da política são necessárias para o desenvolvimento de nossas ações em sociedade. Seja o que for feito, ninguém nega a importância de se refletir, pensar, diagnosticar a situação, a conjuntura nas quais se pretende agir e interferir na realidade. Como posso participar da melhora de um grupo de pessoas (na qual posso me incluir) se não conheço adequadamente as relações constantes dessas pessoas? Como posso prescrever um remédio se não conheço a doença, ou mesmo construir uma ponte sem determinar as características do terreno e dos materiais que utilizo para tal? Nesse caso, o estudo das estruturas sociais, da maneira constante como pensam, agem e sentem as pessoas, das causas dessas formas gerais de ser sociais deve ser a base e anteceder a ação, a atuação o exercício da liberdade e da política que, assim, se tornam obrigatoriamente conscientes.

A investigação das estruturas sociais, desde as formas de família, economia, religião, até as formas mais simples da vida social, do namoro e da diversão, nos coloca uma questão a resolver: como conceber a liberdade se as estruturas determinam a ação humana? Onde a ação humana é mais decisiva?

Bem, desde os clássicos das Ciências Sociais, principalmente desde Marx, sabemos que “o homem faz a história dentro de condições determinadas”, mas é o único ser que faz a história. Os humanos constroem suas vidas coletivas nunca do jeito que querem ou sonham, mas sempre na medida em que fazem, isto é, é preciso fazer, é preciso agir. Claro, há o peso brutal das estruturas, porém é preciso ter uma saída: a atuação.

Mesmo que a situação esteja caótica, é preciso existir o ator. Com todo o peso das estruturas, falta ainda o ator na política. Volto a afirmar: se não houver quem faça não haverá saída e não haverá história. Caso contrário, os males que a sociedade apresenta não terão solução, nunca.

Muitos dizem que essa solução está na política. Isso me fez lembrar de Maquiavel: é preciso ter o líder, o realismo sem utopias e as utopias com realismo e, principalmente ter o fazer. Calma! Vamos tentar tornar isso mais compreensível.

O político não é aquele que tem utopias (apesar de te-las mesmo que escondidas ou de forma inconsciente) e sim aquele que faz o caminho, é quem cria as condições para a realização (o fazer). Porém é preciso que o fazer esteja apontado para algum lugar senão não há política. É preciso ter visão de onde se quer chegar mesmo que você não chegue. Se tivermos somente a utopia, nos tornamos poetas, pregadores...o utopista nunca se transformará em ator.

Nesse caso, muito poderá ser dito, debates serão feitos, mas nada mudará. É preciso analisar a pulsação da sociedade, pois de repente, do nada, ela pulsa. Quando pulsa, estará aberta para as ações, o fazer, a política e a liberdade.

O problema maior é que as sociedades não ficam sempre pulsando, fervendo. Elas param, as vezes. Portanto, o conhecimento das estruturas pode ser uma boa forma de identificar os momentos da pulsação e das portas que se abrem para as ações das pessoas que transformam realidades.

Nesses momentos impares, a questão da liderança e da ação estarão abertas, pois a sociedade estará disposta a ouvir. Marx, certa vez, afirmou algo parecido com isso: “Não basta haver a verdade, é preciso que os problemas tenham tal magnitude e que a sociedade esteja disposta a ouvi-la”.

Mas, quem fará o que é preciso? Nesse terreno, a persuasão é mais adequada que o convencimento. Nas mãos do ator, que conhece as estruturas e sabe que as portas foram abertas para o exercício da ação, o convencimento racional não terá utilidade. Precisamos persuadir e não convencer para termos seguidores, pois uma andorinha só não faz verão. Precisamos ser políticos.

sábado, 24 de julho de 2010

UM BREVE HISTÓRICO DO BULDOGUE INGLÊS


Atualmente o típico buldogue inglês é um animal tranqüilo, fiel, companheiro e dorminhoco, porém esse tipo de cão tem origens que parecem contradizer essas características. Os buldogues nasceram historicamente para os combates, para satisfazer necessidades bélicas do ser humano. Oriundos dos antigos Mastins asiáticos, cães de tamanho avantajado, com uma potente cabeça e detentor de um focinho curto, tornaram-se na antiga Inglaterra cães com a finalidade de combater os ferozes Molossos de origem grega. Os Molossos eram frequentemente utilizados como armas pelo exército romano em suas guerras de conquista na Antiguidade. Os Mastins asiáticos foram introduzidos na Europa pelos hábeis navegantes fenícios que haviam estabelecido uma florescente rede de rotas comerciais no Mar Mediterrâneo. Essa rede terminava no porto da Cornuália, já nas ilhas britânicas. Na época da expansão do Império Romano, os britânicos tentaram resistir à invasão romana utilizando seus Mastins em combates contra os Molossos.

Portanto, no início de sua história, na Grã-Bretanha, o ancestral do buldogue destacou-se participando das lutas dos povos bretões contra o domínio romano quando, no ano de 55 A.C., esse império tentou invadir pela primeira vez as ilhas britânicas. Esse cão, levado à Roma por legionários admirados com a coragem e a ferocidade do animal, foi utilizado também contra os adeptos do cristianismo nas arenas e até contra ursos para a simples diversão de seus donos e para simbolizar a força do Império. Apesar de estarmos muito longe do atual buldogue inglês, observando esses feitos extraordinários dos Mastins lutadores, podemos entender porque em torno desse animal foi forjada a história de um cão que acabou se tornando símbolo e orgulho de uma nação beligerante e conquistadora (primeiro o Império Romano e depois o Império Britânico).

Após alguns séculos, estes Mastins foram mesclados com os cães locais na Grã-Bretanha e foi desenvolvida ali uma espécie chamada de “Pugnaces Britanni”, utilizada pelos habitantes da Ilha para ajudar no pastoreio de bovinos até os açougues.

Na Idade Média, durante o reinado de Henrique II (em meados do ano 1133), a população tinha o costume de organizar lutas dos “Pugnaces Britanni” contra touros. A primeira notícia certa e registrada dessa prática foi narrada sob o reinado de João Sem Terra, no ano de 1209. Um senhor feudal do interior do país, Lord Stamford, passeando pelas muralhas de seu castelo viu dois touros lutando pela posse de uma fêmea. Nessa ocasião, cães Pugnaces de um açougueiro do local precipitam-se sobre um dos touros, seguiram-no pelas ruas do povoado e o abateram após uma luta feroz.

Lord Stanford gostou tanto do espetáculo que presenteou, com as terras onde havia se iniciado a referida luta, o Grêmio (Sindicato) dos Açougueiros. Essa doação foi feita com a condição de, sempre às vésperas do Natal, o Sindicato realizasse ali um combate similar ao que Stanford observara. Denominado de “Bull-Baiting”, esses combates entre os cães dos açougueiros e os touros furiosos se tornaram muito famosos e populares na Inglaterra. No auge da popularidade dessa prática, no qual se apostavam vultosas somas em dinheiro, os cães Pugnaces tinham árduos defensores, tanto na nobreza como entre os deserdados. Espalharam-se arenas destinadas para este espetáculo, cujos vestígios existem até hoje na Inglaterra. Daí provavelmente vem a origem da troca do nome de Pugnace para “bulldog” na denominação desses animais. A palavra bulldog não significa cão-touro, mas sim cão para o touro.

Anos de seleção, aperfeiçoando ainda mais a ferocidade e a coragem, tornaram o buldogue um animal obsessivo por luta e sangue. Nas Bull-Baiting, o touro era amarrado pelos chifres por uma corda a uma estaca no centro de uma arena em forma de círculo. Nessa situação, defendia-se com os chifres tentando cornear o abdome do buldogue. O cão, por sua vez, desenvolveu a tática de rastejar para proteger-se dessas investidas. Estes combates produziam cenas fantásticas: os buldogues atingidos eram lançados para o alto e os Bullots (os donos dos cães) amorteciam a queda dos cães com seus aventais de couros (típicos dos açougueiros) pois, mesmo feridos, os buldogues retornavam para a luta. Os Bullots faturavam muito com as apostas da população em seus cães.

Os buldogues eram possuidores de uma incrível e incomparável resistência à dor e, além disso, o ataque era dirigido para o focinho do Touro, ao qual mantinha preso até que o bovino, ensangüentado e exaurido, caía subjugado. Observa-se, em gravuras antigas, que algumas outras variedades de cães, mais focinhudos como os Spitz, foram testados nestes combates, porém demonstraram um desempenho muito inferior ao do buldogue. A técnica de ataque e destemor nas lutas fez com que o buldogue ganhasse o domínio e a fama neste cenário, tornando-se a raça absoluta e exclusiva para a prática dessas lutas, conquistando ilustres personagens da nobreza inglesa: os Reis Jaime I, Ricardo III e Carlos I.

A Rainha Isabel I que era apaixonada pelo Bull Baiting, proporcionava este espetáculo como parte dos entretenimentos nas recepções oferecidas aos embaixadores e monarcas dos países vizinhos. Em 1795 na cidade de Liverpool, realizaram um espetáculo de Bull Baiting num dique seco e quando acabou a luta abriram as comportas de água fazendo submergir todos os animais vencidos.

Já na Idade Moderna, buscou-se potencializar ainda mais o físico e o temperamento dos buldogues e isto acarretou uma progressiva mutação nesse animal resultando na fixação genética de anomalias. Patas tornaram-se curtas para rastejar melhor e assim poder esquivar-se com mais eficiência dos chifres. Um recuo acentuado do focinho proporcionou um aumento do prognatismo, o que resultou numa mandíbula poderosa cuja a força e poder o próprio cão desconhecia. Dessa época provem algumas peculiaridades físicas que ainda hoje caracterizam de maneira inconfundível esses cães, por exemplo, o fato de esses animais serem dotados de extremidades curtas (para que o touro tenha dificuldades em “chifrá-los”, arremessando-os para o alto), terem o focinho bem curto e com a ponta do nariz recuada em direção aos olhos (para facilitar a respiração durante a mordedura) e a presença de rugas no focinho (para que o sangue do touro escorra com fluência e não entre em seus olhos).

A criação de buldogues que obtiveram êxito em combate se converteu em uma atividade muito rentável, tendo aficionados sobretudo entre os trabalhadores mineiros da região de Black Country. A moda dos Bull-Baiting chegou a tomar parte de toda a Grã-Bretanha não sendo mais privilégio dos ‘açougueiros’ e lordes britânicos. Obteve-se da intensa prática desses combates e da seleção de características peculiares, um cão de força extraordinária em relação ao seu tamanho, agora bem menor quando comparado aos Mastins e Pugnaces de onde se originou. Um cão compacto porém muito musculoso, ágil e feroz.

Nos novos tempos do Iluminismo do séc. XVIII, a evolução do pensamento e o refinamento da civilização européia tornaram os Ingleses conscientes da carnificina injustificável que estes combates representavam. Após muitos debates, a oposição aos Bull-Baitings se fez tão forte que em 1835 se chegou à promulgação de uma lei na qual todos os combates entre animais foram proibidos em solo britânico. Vale lembrar que essa atitude proibitiva dos britânicos já havia sido tomada por holandeses em 1698 e por franceses em 1834, fruto da modernidade iluminista.

Com a ilegalidade dos combates entre cães e touros, o buldogue esteve a ponto de extinguir-se, pois não havia mais interesse dos criadores em se manter a raça. Tentou-se utilizá-los como cães de guarda e defesa, porém a agressividade típica desses cães era muito grande, tornando-os demasiadamente perigosos para esse fim. Nesse período de ilegalidade, a raça ficou nas mãos de bandidos, de indivíduos marginais e mal intencionados, que promoviam e mantinham as rinhas na clandestinidade.

Em uma direção oposta aos marginais, os autênticos amantes e entusiastas do buldogue começaram a modificá-lo para resgatar o cão desse triste quadro. Apesar da raça não ser remunerativamente interessante nesses tempos de ilegalidade dos combates, o amor por ela e pelo patrimônio genético que estava para se perder motivou uma espetacular reação de vários criadores.

Nesse contexto, as subseqüentes décadas foram utilizadas para promover a eliminação da ferocidade do buldogue. Esse animal extremamente perigoso e preparado para lutar deveria se transformado completamente. Os verdadeiros amantes da raça (e não dos combates) iniciaram um paciente trabalho de triagem para a seleção dos cães que apresentassem um temperamento equilibrado, dócil e seguro. Neste empenho, foram impedidos de se reproduzirem todos os cães agressivos, neuróticos ou inconstantes. Estes foram sistematicamente rejeitados em favor dos exemplares seguramente de boa índole, tornando o buldogue seguro e adequado ao convívio civilizado. O buldogue tornou-se um cão com índole inteiramente diversa daquela utilizada nas arenas, apesar de manter boa parte de suas características físicas que o tornava inconfundível. Nessa direção, aficionados com seriedade, se ocuparam em desenvolver essa raça de boa índole nos subúrbios de Londres, Birmingham, Sheffield y Nottingham. O interesse pelo buldogue foi recuperado aos poucos e,nos dias 3 e 4 de dezembro de 1860, precisamente em Birmingham , os novos buldogues fizeram sua primeira aparição num ringue de exposição.

A primeira exposição de cães foi na Inglaterra em 1859

Os Ingleses foram os pioneiros na cinofilia mundial e os estudos e práticas relacionadas à recuperação do buldogue ajudaram muito nessa história. Em 1863, Samuel Wickens redigiu o primeiro Standard de uma raça canina no mundo cujo conteúdo era o novo buldogue. Nesse mesmo ano foi inscrito o primeiro buldogue no famoso e pioneiro “Livro de Origens” da cinofilia britânica. O nome de registro desse buldogue era marcante e significativo para a continuidade da raça: Adão. Um ano depois, em 1864, se criou o primeiro Clube desses cães: “The Bulldog Club”. O pioneirismo dessa associação antecedeu a fundação do primeiro Clube de cinofilia do mundo, que existe até hoje, o famoso “The Kennel”, fundado em 1873.

Portanto, é importante sempre lembrar que “The Bulldog Club” foi o primeiro Club dedicado a uma raça canina, antecedendo em 9 anos a fundação do primeiro clube de cinofilia da histó Apesar de pioneiro, o “The Bulldog Club” teve uma existência breve, encerrando suas atividades em 1875. No mesmo ano foi fundado o “The Bulldog Club Incorporated”, em atividade até a presente data, passando a coordenar as atividades sobre a raça na Inglaterra. Esta nova associação se encarregou de revisar o Standard elaborado por Wickens, tornando-o oficial. Esse novo Standard se manteve inalterado até 1909, ano em que sofreu modificações na sua forma e não no conteúdo, permanecendo praticamente inalterado até os dias atuais na Inglaterra.

Neste período, os novos padrões do buldogue começaram a difundir-se na Europa, onde encontraram uma aceitação crescente por parte do público e da crítica que perdura até hoje. Os ingleses também fizeram boa parte do mundo conhecer o buldogue através de seus vários domínios políticos e militares nos quatro cantos do planeta.

As várias “caras” do buldogue

Ao longo da história da criação do buldogue, esse cão tem sido vítima das decisões (muitas fezes infelizes) do homem. Isso ocorreu, por exemplo, quando no passado selecionamos os exemplares mais ferozes com vista à eficiência nos combates e também quando exageramos a morfologia desse animal para convertê-lo em um autêntico show-dog (cão espetáculo). O buldogue foi modificado até o ponto de ser proposta a sua remodelação profunda devido à proibição dos combates públicos com touros, fato que obrigou o homem a recuperar as suas características de cão normal. Essa á a marca registrada do buldogue do século XX e XXI.
Entretanto, esse caminho não foi fácil para o buldogue. Quando esse animal recuperou-se do passado sangrento se convertendo num cão de exposição, muitas pessoas decidiram criar a raça.

Nesse meio de entusiastas, surgiram também as pessoas mal preparadas e desejosas de obter somente um ganho fácil. Com a intenção de produzir exemplares cada vez mais típicos, ultrapassaram-se novamente os limites da normalidade para se obter um cão com características hiper típicas: cabeças enormes, extremidades curtíssimas e condutos nasais inexistentes. Acabou transformando na caricatura de si mesmo e começou a apresentar sérios problemas. Observavam-se animais tão deformados que sequer eram capazes de dar uma volta num quarteirão atrás de seus donos. Novamente, os autênticos amantes da raça rebelaram-se agora contra a moda que imperava, do cão hiper tipo. Entre as duas facções que se formaram, felizmente prevaleceu um meio termo. Optou-se por uma raça dotada de uma constituição física sem excessos de nenhum tipo. Este movimento de opinião obrigou aos criadores e juizes seguir o tipo desejado pelo público.

O buldogue hoje

Se atualmente o buldogue é adorável e incomparável companheiro das crianças, é incontestável que nos primeiros textos do Standard dessa raça o redator recomendava que os cães crescessem em restrito contato com as crianças. Ver uma ninhada de filhotes de buldogue completamente enrugada faz desaparecer qualquer temor que havia por eles.

O mundialmente famoso e original buldogue inglês chega ao início do terceiro milênio como um clássico, uma raça que jamais sai da moda. Um cão destinado a um seleto grupo de pessoas que possuem sensibilidade para apreciar este cão dotado de qualidades estéticas da mais alta classe e de um temperamento dócil exemplar. Não existe nenhum outro cão como o buldogue.

domingo, 11 de julho de 2010

A Experiência da Força


Os fenômenos abordados pelas Ciências Sociais são algo de fantástico. Afirmamos isso não só levando em consideração a quase infinitude de seus temas e de suas formas de abordagem. O fora do comum próprio da Sociologia, Economia e da Política reside também em outras circunstâncias. O fato de todos os cientistas sociais estudarem relações humanas das quais são produto e nas quais diretamente participam, torna o trabalho de investigação extremamente distinto quando comparado à tarefa de outros cientistas. Não estamos nos referindo aos problemas (“incapacidade”) da objetividade e imparcialidade nas conexões entre o sujeito do conhecimento com o objeto a ser conhecido (construído), sempre lembrados como aspectos negativos desse tipo de ciência. Esse é o ponto chave, porém se entendido de outra forma. O incomum, a que nos referimos, está na oportunidade única que somente os sociólogos tem de experimentar as múltiplas sensações próprias do fato de ser simultaneamente sujeito e objeto do conhecimento(e às vezes a fusão de ambos) e, portanto, de estudar o seu mundo e de colocar em prática os resultados de seu trabalho transformando a si mesmo.

Nesse contexto, a política é a forma mais representativa da condição incomum do cientista descrita acima. Experimentar conscientemente o poder, a força, a dominação, seus fundamentos, objetivos e construção, tudo isso em nós mesmo e nas pessoas a nossa volta é algo incontestavelmente fantástico. Quando somos artífices e objetos do exercício do poder, experimentamos profundamente a condição especial dos cientistas sociais.

É preciso ao cientista social, em várias oportunidades, a experiência da política para que amadureça nele a compreensão cidadã de sua inserção social no mundo que o rodeia, na comunidade da qual faz parte e atua, enfim, na vida em comum na qual existe. Para que fique claro tudo o que tentamos dizer, vamos dar o testemunho de algo vivido por nós nesse contexto.

Há algum tempo tive a oportunidade de “ver de perto” o fenômeno do poder. Senti na pele a sua dinâmica própria e o aceitei após muitas reflexões e considerações: recebi uma advertência da instituição em que trabalho constrangendo o meu comportamento, acrescido da proibição de alguns de meus atos, enfim, da coerção através do uso da força. Foi me retirada a liberdade de ação sob a ameaça de castigos a minha pessoa caso eu resistisse.

Antes que alguém imagine qual foi a péssima atitude que tive, passível de advertência institucional, adianto que não machuquei ninguém, roubei, ou coloquei a vida de outra pessoa em risco. Não pratiquei o falso testemunho, muito menos depus contra a integridade institucional de meu local de trabalho. Garanto! O que foi feito não ultrapassou os limites das situações normais de uma pessoa que deseja o melhor para si, que tem sentimentos autênticos, que orienta a vida para o sentido da felicidade, do bem estar individual sem intenções maléficas ou destrutivas daquilo que consideramos essencialmente humano. O que fiz? Apenas me apaixonei por um projeto na qual acreditava e sobre o qual tinha todas as justificativas e argumentos plausíveis e aceitáveis. Esse projeto me arrebatou de forma irresistível.

Entretanto, o exercício da força foi praticado sobre mim. Sim! A força me constrangeu. Pessoas com as quais tinha ( e ainda tenho, espero) amizade, na posse de meios de coerção (até meios violentos como a intimidação), influíram no meu comportamento. Impuseram a mim a suas próprias vontades, e venceram todas as minhas resistências. Deixaram bem claro para mim que, apesar de entenderem que o meu vínculo com eles ( e com a instituição que eles representam) ser uma relação social, ele é pautado em uma relação desigualdade. Isso foi uma das marcas da advertência, pois não me foi dado a chance de contestar ou me justificar. Foi um ato de poder a maneira do príncipe de Maquiavel: “justificado por Razões maiores”. Foi, em parte, a prática da dominação legal weberiana.

Sempre pensei que ter poder não era, basicamente, estar em condições de impor a sua própria vontade contra qualquer resistência. Seria antes à maneira durkheimiana, dispor de uma autoridade (capital de confiança) tal que um grupo de pessoas me delegasse o poder da realização de fins coletivos (como um escritor de renome, um pensador ilustre ou um velho sábio que influem no comportamento das pessoas ditando formas de comportamento por aceitação consensual produto de suas respectivas ascendências sociais). Porém, apesar de eu considerar meus chefes institucionais como pessoas que respeito e admiro, a advertência sobre meu comportamento foi um ato coercitivo que se realizou sob o uso da força, ou da ameaça do uso da mesma caso houvesse resistência (a minha possível e provável demissão). Em hipótese alguma foi um convencimento por ascendência social ou consciência coletiva.

Após algum tempo, me vi refletindo seriamente sobre o ocorrido. Talvez para eu poder absorver, digerir o ato de força do qual foi alvo, buscando entendê-lo de forma mais analítica e crítica, ainda que sofrendo as dores do constrangimento. Fiz isso na companhia de Hobbes, filósofo que eu ensinava aos meus alunos naquele momento.

Hobbes me mostrou que eu precisava superar a compreensão da restrição da minha liberdade (conteúdo da advertência institucional que recebi) como um ato simplesmente de exercício do poder de quem o possui frente a mim, alguém que não possui o poder, isto é, como um ato exclusivamente de desigualdade social (institucional) sem qualquer outro tipo de fundamento ou propósito.

Era preciso deixar os óculos anarquistas e libertários de lado para a compreensão mais crítica do ocorrido. Afinal, sou um professor que tento ser amigo de meus alunos, porém, ainda assim, detenho o poder de adverti-los, poder esse que os alunos não têm sobre mim. Lembrei-me de todas as formas de advertência e punições que utilizamos em nossos alunos que resistem a nossa autoridade, mesmo sendo esses alunos cordiais na maioria das vezes conosco. Hobbes me fez lembrar de alguns fundamentos da política, através da minha experiência como aplicador da força: a submissão civil (exemplo: a ordem nas salas de aula) não se confunde naturalmente com a aceitação da autoridade/ ascendência social. Nós professores experimentamos diariamente essa tese hobbesiana de que a certeza da impunidade mostra como é frágil a nossa autoridade. Por isso advertimos e punimos constantemente os alunos que resistem em nos ouvir, obedecer, enfim, a serem disciplinados.

O mais interessante é que as nossas salas de aula são exemplos notáveis de como nos comportamos em sociedade. Na sociedade, como nas salas de aula, as pessoas nunca se entendem sobre os valores, opiniões, conclusões, nunca alcançam a unanimidade para designar o que é verdade, a sabedoria, a virtude etc. Nesse contexto, espontaneamente cada um de nós pensa ter condições de chegar à verdade, à felicidade, a melhora de sua vida, enfim, de governar a si próprio. Nossos alunos são exemplos de como nós nunca somos animais que tendemos ao consenso e nunca nos inclinamos perante a “razão pura”.

Não obedecemos a alguém por ele estar com a Razão, mas sim por que seremos castigados se infringirmos a ordem. Em última instância, foi assim que ponderei quando fui advertido. Totalmente envolvido com as minhas paixões, convicções, totalmente justificadas pelas minhas razões, nunca seria capaz de entender o porquê fui advertido.

A paixão é o estado natural do ser humano. É o que o faz acreditar no futuro, a mudar de vida, a se empenhar no enfrentamento dos problemas a ser feliz e a buscar sempre o melhor para si. Por isso adoramos a liberdade e a esperança de que poderemos vencer. Só é necessário ter a coragem de tentar fazer o que for necessário. Porém, a felicidade e a liberdade (fundamentos de nossa existência humana), não estão sintonizadas com o bem comum e, dessa forma não podem ser o cimento da sociedade. Se buscarmos a realização de nossos sonhos, quase sempre não buscamos o bem comum.

Hobbes foi um dos primeiros filósofos políticos a afirmar que a sociedade é um conjunto de atividades que não tem como objetivo o bem comum, e que esse conjunto precisa exercer-se no quadro da paz. Nesse contexto, a possibilidade de gozar ao máximo, em paz, de todas as comodidades da vida, exige a segurança. O bem comum é algo inalcançável tendo em vista as paixões humanas, o consenso em torno de uma autoridade social é uma utopia entre os apaixonados pela vida e pela liberdade. Mas essa paz precisa ser construída entre as pessoas para que as mesmas possam viver seguras. Essa paz é produto do uso da força. Para que uma pessoa tenha espaço para realizar seus sonhos e desejos, outros precisam ser constrangidos em seu comportamento, pois todos, igualmente, precisam ter a chance de viverem e isso só é possível em paz.

Segundo Hobbes, no princípio existem indivíduos apaixonados e em luta (mesmo que latentes) em busca da realização de seus desejos, sonhos e convicções impossibilitando por causa disso a vida em comum e a segurança de todos. O problema político assim é o de encontrar uma solução, permitindo que esses indivíduos separados por suas paixões, retraídos aos seus interesses particulares, ciosos pela a conquista de seus objetivos, sejam integrados, apesar de tudo, numa totalidade em que se preserve o espaço de todos. Para tanto, o medo da punição ainda serve como um excelente instrumento.

É preciso uma legislação encarregada de disciplinar a insociabilidade natural dos homens apaixonados. Trata-se de obter um equilíbrio dos direitos de todos em meio ao antagonismo, que continua sendo a trama do social. É preciso que cada pessoa esteja ciente de que, pela aplicação da força, a agressividade dos demais se encontrará limitada e que a minha liberdade respeitará todas as demais (por medo da aplicação da mesma força sobre mim) e que, portanto, também não encontrará obstáculos para o seu exercício.

Nesse contexto, o poder é a condição para que a reciprocidade dos procedimentos corretos (base de uma sociedade racional) se torne alguma coisa crível. Para Kant, outro filósofo brilhante, objetivo da união civil seria o de garantir a independência de cada um frente ao arbítrio necessitante de outrem. Meu comportamento foi limitado para que fosse garantido a independência da instituição na qual trabalho e de suas linhas mestras ( e de todos aqueles que acreditam nela ) frente a minha vontade de realizar o meu sonho.

Por que reduzir o poder à proibição, à censura, à repressão? Por que pensar no poder enquanto limitador, dotado apenas do poder do não, conduzindo apenas a forma negativa do interdito. O poder é menos o controlador de forças que seu produtor e organizador. Deixemos de representar o poder como uma instância estranha ao corpo social e opor o poder ao indivíduo. O poder nos garante a vida em comum.

Que o poder pode limitar à sua maneira as minhas liberdades, tudo bem, mas nem por isso ele será mero (apenas) exercício de uma força repressiva. Sem essa força, cujos efeitos podem ser bem desagradáveis, não haveria paz, unificação e união nem sociedade. Portanto, não há comunidade sem unificação, não há unificação sem poder. A multidão se torna um corpo político apenas com o uso da força.

Somente o exercício de um poder é capaz de compensar o isolamento do homem em seus próprios sonhos e de reivindicar a sua condição de indivíduo inserido em uma sociedade.

Aprendi essa dura lição hobessiana "na pele" e assim de fato experimentei o poder. Porém, ainda quero realizar o meu sonho! Apenas tentarei de outra forma.

sexta-feira, 7 de maio de 2010


Max Weber e o estudo dos sentidos da sociedade

Max Weber nasceu na cidade de Erfurt, na Alemanha, em 21 de abril de 1864. Filho de uma família da alta classe média, Weber encontrou em sua casa uma atmosfera intelectualmente estimulante. Seu pai era um conhecido advogado e desde cedo orientou o jovem Weber no sentido do estudo das humanidades. O círculo de pessoas que freqüentavam a casa dos Weber era feito de professores de História, escritores e artistas criando uma atmosfera intelectual e também prosaico que muito chamou a atenção do jovem Max.

Outra experiência familiar que marcou a vida de Weber foi a religiosidade de sua família. Helene, mãe de Weber, era devota protestante e, nas questões religiosas, seu espírito era decidido. Buscava Deus pessoalmente e não por intermédio da religião instituída ou da teologia literária, mas sim por meio de uma conduta pessoal de silenciosa e decisiva fé. Helene defendia o repúdio de emoções e desejos, combinado com o individualismo intolerante e a busca do dever cristão na rotina cotidiana. De certa forma, essa prática trazia para a casa dos Weber na Alemanha o velho tema desenvolvido no século XVIII na Inglaterra e na América: o calvinismo clássico. Esse tema consistia na idéia de que a santificação do indivíduo é um processo exemplificado na zelosa e obediente colaboração na obra de Deus. Helene, agindo domesticamente dessa forma, afetou poderosamente o pensamento de seu filho. Um dos trabalhos mais importantes da futura sociologia de Weber foi exatamente a análise das relações entre a religião e a economia e, em especial, a análise da Ética Protestante com o desenvolvimento do capitalismo na América.

O universo da política também fez parte da vida de Weber ainda dentro de sua casa. Weber pai, figura autocrata e envolvido com a política prussiana, na época uma das potências européias, trazia para casa as fofocas, notícias e conhecimentos sobre o que se passava nos corredores do poder, sejam nos parlamentos, gabinetes governamentais, sedes de partidos etc. Nos relatos do pai sempre brotava ensinamentos para o jovem Weber através de princípios morais da ação eficiente, de uma "ética do êxito", própria da política desde os ensinamentos de Maquiavel contrariando a ética cristã dos de méritos intrínsecos. Anos depois desses ensinamentos paternos, Weber publicaria belas análises sobre as formas de poder, sobre as modalidades de ações no interior da sociedade e sobre as diferenças entre a Ciência e a Política.

Carregando essa rica e complexa “bagagem” doméstica, Weber parte para a educação escolar básica direcionando-se para a História, a Literatura Clássica e as Línguas Estrangeiras, complementando sua formação em ótimos colégios. Em 1882, começou os estudos superiores em Heidelberg; continuando-os em Göttingen e Berlim, em cujas universidades dedicou-se simultaneamente à Economia, novamente à História, à Filosofia e ao Direito.

A formação acadêmica de Weber se deu em um contexto muito especial no qual as disputas metodológicas nas ciências sociais começavam a surgir na Europa e o nosso jovem professor participou decisivamente desses conflitos teóricos em seus trabalhos como economista na Universidade de Freiburg em 1893, da qual se transferiu para a de Heidelberg, em 1896. Dois anos depois, sofreu sérias perturbações nervosas que o levaram a deixar os trabalhos docentes, só voltando à atividade em 1903, na qualidade de co-editor do Arquivo de Ciências Sociais (Archiv tür Sozialwissenschatt), publicação extremamente importante no desenvolvimento dos estudos sociológicos na Alemanha. Nessa revista acadêmica pode sistematizar suas reflexões sobre a metodologia, o objeto de estudo e os grandes temas abordados em sua proposta de sociologia, publicando simultaneamente inúmeros trabalhos que se tornariam pilares da ciência social moderna.

A Sociologia Compreensiva

Na época em que Weber publicou seus primeiro trabalhos sociológicos, o método das ciências naturais triunfava como única forma de conhecimento que levaria a humanidade ao progresso material e moral, concretizado nas tecnologias industriais que proporcionavam transformações e a melhora da vida material do homem em inúmeros aspectos. Portanto, partindo dessa fecundidade indiscutível da metodologia das ciências naturais, vários pensadores sociais procuravam conhecer os fatos humanos, abordando-os segundo as coordenadas das ciências exatas e biológicas. Entre esses pensadores podemos citar Durkheim (apesar da originalidade de sua sociologia) ainda seguidor de preceitos teóricos de Comte. De maneira corajosa, Weber se contrapôs a essa metodologia debatendo os fundamentos da mesma.

Segundo Weber, a sociedade e sua história deveriam ser estudadas de forma totalmente diversa da maneira como os cientistas investigam a natureza. Acreditavam que a sociedade, ao contrário da natureza física e biológica, fazia parte de uma complexa trama de relações própria do modo de ser da espécie humana, de suas categorias sociais e de seus interesses. Por causa desses aspectos ímpares, Weber, ao contrário de Durkheim e Comte, defendeu a peculiaridade do fato humano na elaboração dos estudos sociais e a conseqüente necessidade de uma metodologia própria para o estudo dessa realidade.

Weber argumentou que o conhecimento dos fenômenos naturais tratava-se do estudo de uma realidade externa ao próprio homem, isto é, da dinâmica própria do mundo físico, químico e biológico nos quais a experiência humana aparentemente não tinha como interferir ou transformar. Em contraposição a isso, as ciências sociais teriam como objetivo conhecer a particularidade da experiência humana fundamentalmente social e diversa da dinâmica dos fatos naturais.

Nesse contexto, ao contrário de Durkheim, Weber não pensa que a ordem social tenha que se opor e se distinguir dos indivíduos como uma realidade externa a eles, mas que as normas sociais se concretizam exatamente quando se manifestam em cada indivíduo sob a forma da motivação de cada pessoa. De acordo com essa distinção entre experiência externa ao homem e experiência humana, a sociologia weberiana distinguiu uma série de contrastes metodológicos entre as ciências naturais e sociais, tipos completamente distintos de conhecimento. Sintetizando, as ciências naturais partiriam da observação sensível, e seriam essencialmente experimentais, procurando obter dados mensuráveis e regularidades estatísticas que conduzissem à formulação de leis de caráter físico, procurando explicar as relações causais entre os fenômenos. Por outro lado, de forma inteiramente diversa, as ciências humanas e sociais teriam como objetivo a compreensão dos processos próprios da experiência humana que seriam sociais, mutáveis, exigindo do pesquisador uma interpretação que extraísse deles o seu sentido interno não inteiramente mensuráveis. Ao aplicar esse inovador método da compreensão aos fatos humanos sociais, Max Weber elabora os fundamentos de uma nova sociologia, chamada de compreensiva ou interpretativa.

O estudo da Ação Social

Weber vê como objetivo primordial da sua sociologia compreensiva a captação da relação de sentido da ação humana com caráter social, ou seja, "aquela cujo sentido pensado pelo sujeito ou sujeitos é referido ao comportamento dos outros; orientando-se por ele o seu comportamento". O método compreensivo, defendido por Weber, consistiria em entender o sentido que as ações de um indivíduo teriam e não apenas os seus aspectos exteriores Se, por exemplo, uma pessoa dá a outra um alimento, essa ação como um simples fato, em si mesma, seria irrelevante para o sociólogo. Por outro lado, quando um pesquisador sabe que a primeira pessoa deu o alimento para a outra como forma de troca econômica (um pedaço de carne por uma nota de dinheiro) estará diante de um fato propriamente humano, ou seja, de uma ação carregada de sentido. Weber quer nos dizer que em sua sociologia a ação em questão não se esgotaria em si mesmo, apontando para todo um complexo de significações sociais, na medida em que as duas pessoas envolvidas no ato atribuem ao dinheiro a função do servir como meio de troca ou pagamento; além disso, o que seria mais importante em termos da análise da experiência humana, essa função seria existente e reconhecida por uma comunidade pessoas. Na sociologia compreensiva, conhecemos um fenômeno social quando o compreendemos como fato carregado de sentido que aponta para outros fatos significativos sempre em termos sociais. Esse sentido (grande objetivo da metodologia weberiana), dá à ação concreta o seu caráter, quer seja ele político, econômico ou religioso. O objetivo do sociólogo é compreender este processo, desvendando os nexos causais que dão sentido à ação social em determinado contexto social.

A proposta metodológica compreensiva afirma não ser possível propriamente explicar as ações sociais como resultados de um relacionamento de causas e efeitos (procedimento das ciências naturais), mas sim compreendê-lo como fatos carregados de sentido, isto é, como algo que aponta para outros fatos e pessoas e somente em função dos quais poderia ser conhecido em toda a sua amplitude. Nessa linha de raciocínio que remonta a famosa distinção entre o conceito explicação (Erklären) e o conceito compreensão (Verstehen) feita pelo filósofo e historiador Wilhelm Dilthey ( freqüentador das casa dos Weber), a sociologia compreensiva estuda os sentidos sociais mais presentes na modernidade e os classifica em três tipos chamados de “puros”.

Os tipos puros de ação social

Relembrando o conceito weberiano, por ação social entende-se, um comportamento humano sempre em que o agente ou agentes o relacionem a um sentido social ou motivação social. Uma piscadela de olhos, quando é um gesto que sinaliza alguma coisa, é um comportamento que tem um sentido para quem o praticou e nesse caso é uma genuína ação, sendo diferente de um tique nervoso que faz alguém piscar os olhos automaticamente, sem que nenhum sentido seja atribuído a esse ato.

Porém, o caráter social do ato da piscadela se manifesta somente quando pisco um olho para dizer a alguém que estou tramando alguma coisa contra um terceiro. Nesse caso, o sentido de minha ação (piscar o olho) tem a ver com o fato de que quero me comunicar com a outra pessoa. É sempre bom lembrar que a ação social em Weber se define pela participação de outros na elaboração de seu sentido, não importando o tipo dessa participação. A ação social pode ser “boa” ou “má”. Praticar violência em alguém é uma ação social, pois o sentido do ato violento tem a ver com a presença de um outro e com alguma coisa que esse outro fez ou deixou de fazer. Dentro dessas coordenadas, Weber apresenta seus três tipos de ação social da seguinte forma.
Um dos tipos weberianos é o da “ação racional com respeito a fins”. De acordo com este tipo, o sentido racional da ação se encontraria na escolha dos meios mais adequados para a realização de um fim pré-determinado pelo agente. O único critério de seleção dos meios seria a capacidade deles realizarem o objetivo estabelecido. Qualquer meio eficiente seria válido tão somente por sua eficiência, independentemente de avaliações morais ou éticas. É o tipo de ação mais freqüente na sociedade moderna. É a ação, por exemplo, do empresário capitalista, é a ação do político, é a ação do crime organizado.

O outro tipo é o da “ação racional com respeito a valores”. A diferença em relação ao tipo descrito acima seria o fato do fim ser um valor ou princípio, podendo ter conteúdo ético, moral, religioso, político ou estético. O que daria sentido à ação seria a sua racionalidade quanto aos valores que a guiaram. A ação seria orientada pela fidelidade aos valores que inspiram a conduta. Desde que fiel aos valores, o comportamento seria válido por si mesmo. Segundo Weber, em alguns casos, a “ação racional com respeito a valores” poderia tender para a irracionalidade tanto mais quanto maior for a adesão aos valores absolutos. É a ação do crente que prefere pregar para as paredes a fazer alguma adaptação de suas idéias de acordo com o gosto do público. É a ação do artista que prefere não vender nenhuma obra a fazer concessões ao mercado. É a ação do político que prefere perder as eleições a renegar a sua ideologia.

Por fim um terceiro tipo é a "ação afetiva ou emocional”. Essa ação não seria racional, pois é a ação inspirada por emoções imediatas tais como vingança, desespero, orgulho, medo ou entusiasmo. Na ação afetiva o agente segue um impulso e não elabora as conseqüências da sua ação. Seria a ação de quem larga tudo por amor, a ação de quem mata a mulher quando descobre que foi traído. A “ação afetiva” se diferenciaria da “racional com respeito a valores” porque nesta última o agente elabora racionalmente o sentido de sua ação de modo que sua conduta seja fiel aos valores aos quais adere. Como foi dito, na ação afetiva não existe elaboração racional das conseqüências.


Os tipos puros de dominação

A aplicação da metodologia compreensiva na análise dos fenômenos sociais, através dos trabalhos de Weber, não se limitou ao estudo das ações sociais e de sua tipologia no seio do mundo moderno. Seguindo os passos do pai, Weber se envolveu com as questões políticas logo após o seu ingresso na docência universitária e como assistente do governo local. No universo mais restrito da política, publicou inúmeros trabalhos de investigação empírica sobre assuntos econômicos e políticos específicos. Entre os primeiros, destacam-se o texto “A Situação dos Trabalhadores Agrícolas no Elba” e “A Psicofisiologia do Trabalho Industrial”. Publicou também análises críticas a respeito da seleção burocrática dos líderes políticos na Alemanha daquela época e da conseqüente despolitização do governo levada a cabo pelos burocratas. Entretanto, apesar de tais trabalhos não serem do conhecimento do grande público, certamente foram o ponto de partida e a base para a elaboração teoria política geral weberiana, da qual brotaram importantes os conceitos e categorias que se tornaram clássicos nas ciências sociais.

Definidos os conceitos básicos de ação social, Weber analisa a natureza dos elementos essenciais que constituem o Estado, chegando ao conceito de autoridade e de legitimidade. Para que houvesse um Estado, seria necessário que um conjunto de pessoas (uma população) obedecesse à autoridade alegada pelos detentores do poder em uma sociedade. Por outro lado, para que os dominados obedecessem seria necessário que os detentores do poder possuíssem uma autoridade reconhecida como legítima. Weber define então a dominação como oportunidade de encontrar uma pessoa (ou população) que esteja pronta a obedecer, e essa dominação se faria necessária para se constituir o Estado, mantendo em ordem a sociedade. Partindo da afirmação de que onde há um Estado, sociedade baseada em regras e hierarquias, há os dominados e os dominantes. Dentro deste modo de interpretar, isto é, de que “a autoridade é a probabilidade de haver obediência dentro de um grupo”, ou o poder de dar ordens com conteúdo determinado, Weber analisa os diversos motivos que levam ao mando e à submissão entre as pessoas em uma sociedade. No cerne das ações sociais no interior de um Estado, moldadas em constelações de interesses, Weber descreve três tipos de dominação/obediência: a Dominação Legal ou Burocrática, a Dominação Tradicional e a Dominação Carismática.

Na dominação racional- legal, a obediência se presta não à pessoa que manda, em virtude de direito próprio a mesma, mas a um estatuto (conjunto de regras), que se conhece competente para designar a quem e em que extensão se há de obedecer. Nessa forma de dominação, qualquer direito e dever pode ser posto ou retirado através de um estatuto sancionado corretamente e conhecido por todos. Weber classifica este tipo de dominação como sendo estável, uma vez que é baseada em normas estabelecidas e/ou conhecidas e aceitas por todos. Ou seja, o poder de autoridade é legalmente assegurado, isto é, institucionalizado. Sintetizando, a dominação racional-legal tem como fundamento a obediência em virtude da crença na validade de um estatuto legal e a autoridade mantém-se, assim, segundo uma ordem impessoal e universalista, tendo os seus limites determinados pelas esferas de competência previstas em um conjunto de regras. Quando a autoridade racional-legal envolve um corpo administrativo organizado, toma a forma de estrutura burocrática, o que vale dizer que os princípios fundamentais da burocracia, como a hierarquia funcional, a administração baseada em documentos e Leis, as atribuições oficializadas, entre outras, são as ferramentas típicas dessa forma de dominação.

Na dominação tradicional, na qual a autoridade é, simplesmente, suportada pela existência de uma fidelidade/obediência tradicional, o governante é o patriarca ou senhor, e os dominados são os súditos ou servidores. O patriarcalismo é o a forma síntese desta dominação, na qual a obediência se da por respeito à pessoa que manda, em virtude de uma tradição lhe atribui dignidade pessoal e sagrada dentro do grupo social.. Todo o comando se prende intrinsecamente a normas tradicionais (não legais, isto é baseadas em um conjunto de regras e Leis), isto é, à moralidade tradicionalmente válida no interior de uma sociedade. Nesse contexto, o exercício da autoridade nos Estados desse tipo é definido por um sistema de status (não em uma burocracia), cujos poderes são determinados por prescrições concretas da ordem de um sistema hierárquico estabelecido tradicionalmente. A dominação/obediência tradicional também é classificada por Weber como uma dominação estável, devido à solidez e estabilidade do meio social na qual ela é exercida, que se acha sob a dependência direta e imediata da tradição baseada na moralidade do coletivo.

Na dominação carismática, na qual a autoridade é suportada graças a uma devoção afetiva por parte dos dominados, a obediência se baseia em “crenças” transmitidas por profetas, no respeito que pessoalmente alcançam os heróis e os demagogos, durante as guerras e revoluções, convertendo a fé e o reconhecimento social sobre os quais se sustentam, em uma fonte interminável de ordens e deveres que lhes são aceitos pelos dominados. Segundo Weber,a dominação carismática poderia até se opor às bases de legitimidade de uma ordem social estabelecida e institucionalizada., pois o líder carismático, em certo sentido, seria sempre revolucionário em potencial, na medida em que se colocaria em oposição consciente a algum aspecto estabelecido pela sociedade em que atua. A obediência, nesse sentido, é dependente da crença dos dominados nas qualidades pessoais e excepcionais do líder, podendo ser qualidades dons sobrenaturais, a coragem, a inteligência, faculdades mágicas, heroísmo ou poder de oratória. Weber ressalta que a obediência ao líder é perpetuada enquanto suas qualidades excepcionais lhe são conferidas. Nesse caso, o líder tem que se fazer acreditar por meio de milagres, êxitos e prosperidade em suas ações de governo. Se o êxito lhe falta, seu domínio oscila. Por fim, não existiriam regras na administração, é a grande marca deste tipo de dominação seria criação momentânea e o desaparecimento repentino.

A ética protestante e o espírito do capitalismo

As soluções encontradas por Weber para os problemas metodológicos das ciências sociais do começo do século XX fizeram-no apresentar novas abordagens sobre vários problemas sociais e históricos, e contribuir de forma extremamente importante para o avanço da sociologia. Nesse contexto, Weber inovou em seus estudos sobre a religião, partindo das análises compreensivas sobre as relações entre as idéias e atitudes religiosas, por um lado, e as atividades e organização econômica correspondentes, por outro.

Na Alemanha da época de Weber, essa questão das relações do universo econômico com os outros universos sociais já havia sido debatida e também produzido importantes trabalhos sociológicos. Dentre esses trabalhos, que eram utilizados na época como instrumento de luta econômica e política dos partidos operários, destaca-se os escritos econômicos e filosóficos de Marx. A pergunta que os sociólogos alemães se faziam era se o teoria formulada por Marx era ou não o verdadeiro, ao transformar o fator econômico no elemento determinante de todas as estruturas sociais e culturais, inclusive a religião. Após a publicação de inúmeros trabalhos com o objetivo de resolver esse problema, substituindo-se o fator econômico como dominante por outros fatores, tais como raça, clima, topografia, idéias filosóficas, poder político, Weber apresenta a sua contribuição que será considerada a única à altura das concepções marxistas.

Weber iniciou seus seu estudo sobre o capitalismo comparando exaustivamente as várias sociedades do mundo ocidental (berço do capitalismo) e também as outras civilizações, principalmente as do Oriente, onde nada de semelhante ao capitalismo tinha aparecido. Depois desse longo exercício comparativo, Weber apresentou a sua tese de que a explicação para o surgimento e o desenvolvimento do capitalismo deveria ser encontrada na íntima vinculação desse tipo de fazer econômico com o protestantismo. Em seu famoso livro “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, Weber afirma: “Qualquer observação da estatística ocupacional de um país de composição religiosa mista traz à luz, com notável freqüência, um fenômeno que já tem provocado repetidas discussões na imprensa e literatura católicas e em congressos católicos na Alemanha: o fato de os líderes do mundo dos negócios e proprietários do capital, assim como os níveis mais altos de mão-de-obra qualificada, principalmente o pessoal técnica e comercialmente especializado das modernas empresas, serem preponderantemente protestantes”. Segundo as análises históricas de Weber, os protestantes sempre teriam demonstrado uma tendência específica para o racionalismo econômico e a razão desse fato deveria ser buscada em elementos internos e permanentes de suas crenças religiosas.

Dentro da sociologia weberiana, o capitalismo seria uma ação social com sentido e conteúdo expressa no clássico utilitarismo ético presente na mentalidade dos colonos americanos do século XVIII. Nessa mentalidade, o trabalho e o aumento do capital, isto é, o acúmulo de riqueza como fruto dessa atividade, seriam considerados como um fim em si mesmos, como sobretudo um dever, uma “vocação”. A marca interessante desse utilitarismo estaria na ética da obtenção de mais e mais riqueza (como resultado do trabalho) combinada com o estrito afastamento de todo gozo espontâneo da mesma e da vida. Para Weber, essas seriam as máximas da vida econômica capitalista. A questão colocada por Weber é a seguinte: que fatores teriam levado a transformar em máximas uma forma de agir que, antes do surgimento do capitalismo, era apenas tolerada?

Weber encontrou no protestantismo de origem calvinista idéias éticas fundamentais que o relacionavam com o utilitarismo ético capitalista. A ética calvinista (também chamado por Weber por “Etos Calvinista”, isto é, modo de ser do religioso) afirma que “o trabalho constitui, antes de mais nada, a própria finalidade da vida”. Outra idéia no mesmo sentido estaria contida nas máximas dos puritanos: “a vida profissional do homem é que lhe dá uma prova de seu estado de graça para sua consciência, que se expressa no zelo e no método, fazendo com que ele consiga cumprir sua vocação.” Weber vê aí uma íntima relação entre as duas éticas em questão: o fato de encarar o trabalho como uma atividade em sim mesma e como meta para a vida correta, como uma genuína vocação humana. Outro aspecto da ética protestante intimamente ligado ao espírito do capitalismo é o ascetismo religioso que tira do âmbito do pecado a atividade de aquisição de bens, agora desejada por Deus como forma de prova da eleição do trabalho como vocação da vida do cristão. Entretanto, o gozo imediato e irrefletido dos bens materiais (fruto do trabalho), que caracterizaria para o protestante um desvio de sua conduta ascética é enfaticamente proibido. Para evitar transformar a sua vida em uma busca pelo prazer material e pelo gozo dos prazeres da carne, o protestante trabalha e poupa os frutos dessa atividade. O protestante se via obrigado eticamente a poupar para mostrar para Deus sua fé e sua obediência para com Ele. Segundo Weber, essa poupança de caráter ético-religioso teria íntima relação com o desenvolvimento de uma forma de vida na qual a acumulação de bens seria um objetivo em si mesmo e que teria influenciado muito o surgimento da atividade econômica capitalista. Para Weber, portanto, a ética protestante, ao considerar o trabalho como vocação constante e sistemática do homem e a poupança como o mais alto instrumento de ascese e o mais seguro meio de preservação da redenção da fé do cristão, deve ter sido a mais poderosa alavanca da expressão concepção de vida fundamentalmente econômica constituída pelo espírito do capitalismo.

Por fim, é necessário salientar que Weber, nunca considerou o espírito do capitalismo como pura conseqüência da Reforma protestante. O sentido que norteia sua análise apurar em que medida influências religiosas participaram da moldagem qualitativa do espírito do capitalismo. Percorrendo o caminho inverso, Weber propõe também a compreensão mais aprofundada do sentido do protestantismo, mediante o estudo dos aspectos fundamentais do sistema econômico capitalista. Tendo em vista a grande confusão existente entre os teóricos alemães sobre o estudo das influências entre as bases materiais, as formas de organização social e política e os conteúdos espirituais da Reforma, Weber salientou que essas influências só poderiam ser confirmadas por meio de exaustivas investigações dos pontos em que realmente teriam ocorrido correlações entre o movimento religioso, o desenvolvimento de uma ética vocacional e um modo particular de vida econômica. Talvez, como uma forma de responder as questões sociológicas de seu tempo e de responder questões de sua juventude em um lar protestante, Weber afirma que só poderíamos avaliar em que medida os fenômenos culturais e econômicos contemporâneos se originam historicamente em motivos religiosos, e em que medida podem ser relacionados com eles, através de exaustiva investigação compreensiva.