domingo, 11 de julho de 2010

A Experiência da Força


Os fenômenos abordados pelas Ciências Sociais são algo de fantástico. Afirmamos isso não só levando em consideração a quase infinitude de seus temas e de suas formas de abordagem. O fora do comum próprio da Sociologia, Economia e da Política reside também em outras circunstâncias. O fato de todos os cientistas sociais estudarem relações humanas das quais são produto e nas quais diretamente participam, torna o trabalho de investigação extremamente distinto quando comparado à tarefa de outros cientistas. Não estamos nos referindo aos problemas (“incapacidade”) da objetividade e imparcialidade nas conexões entre o sujeito do conhecimento com o objeto a ser conhecido (construído), sempre lembrados como aspectos negativos desse tipo de ciência. Esse é o ponto chave, porém se entendido de outra forma. O incomum, a que nos referimos, está na oportunidade única que somente os sociólogos tem de experimentar as múltiplas sensações próprias do fato de ser simultaneamente sujeito e objeto do conhecimento(e às vezes a fusão de ambos) e, portanto, de estudar o seu mundo e de colocar em prática os resultados de seu trabalho transformando a si mesmo.

Nesse contexto, a política é a forma mais representativa da condição incomum do cientista descrita acima. Experimentar conscientemente o poder, a força, a dominação, seus fundamentos, objetivos e construção, tudo isso em nós mesmo e nas pessoas a nossa volta é algo incontestavelmente fantástico. Quando somos artífices e objetos do exercício do poder, experimentamos profundamente a condição especial dos cientistas sociais.

É preciso ao cientista social, em várias oportunidades, a experiência da política para que amadureça nele a compreensão cidadã de sua inserção social no mundo que o rodeia, na comunidade da qual faz parte e atua, enfim, na vida em comum na qual existe. Para que fique claro tudo o que tentamos dizer, vamos dar o testemunho de algo vivido por nós nesse contexto.

Há algum tempo tive a oportunidade de “ver de perto” o fenômeno do poder. Senti na pele a sua dinâmica própria e o aceitei após muitas reflexões e considerações: recebi uma advertência da instituição em que trabalho constrangendo o meu comportamento, acrescido da proibição de alguns de meus atos, enfim, da coerção através do uso da força. Foi me retirada a liberdade de ação sob a ameaça de castigos a minha pessoa caso eu resistisse.

Antes que alguém imagine qual foi a péssima atitude que tive, passível de advertência institucional, adianto que não machuquei ninguém, roubei, ou coloquei a vida de outra pessoa em risco. Não pratiquei o falso testemunho, muito menos depus contra a integridade institucional de meu local de trabalho. Garanto! O que foi feito não ultrapassou os limites das situações normais de uma pessoa que deseja o melhor para si, que tem sentimentos autênticos, que orienta a vida para o sentido da felicidade, do bem estar individual sem intenções maléficas ou destrutivas daquilo que consideramos essencialmente humano. O que fiz? Apenas me apaixonei por um projeto na qual acreditava e sobre o qual tinha todas as justificativas e argumentos plausíveis e aceitáveis. Esse projeto me arrebatou de forma irresistível.

Entretanto, o exercício da força foi praticado sobre mim. Sim! A força me constrangeu. Pessoas com as quais tinha ( e ainda tenho, espero) amizade, na posse de meios de coerção (até meios violentos como a intimidação), influíram no meu comportamento. Impuseram a mim a suas próprias vontades, e venceram todas as minhas resistências. Deixaram bem claro para mim que, apesar de entenderem que o meu vínculo com eles ( e com a instituição que eles representam) ser uma relação social, ele é pautado em uma relação desigualdade. Isso foi uma das marcas da advertência, pois não me foi dado a chance de contestar ou me justificar. Foi um ato de poder a maneira do príncipe de Maquiavel: “justificado por Razões maiores”. Foi, em parte, a prática da dominação legal weberiana.

Sempre pensei que ter poder não era, basicamente, estar em condições de impor a sua própria vontade contra qualquer resistência. Seria antes à maneira durkheimiana, dispor de uma autoridade (capital de confiança) tal que um grupo de pessoas me delegasse o poder da realização de fins coletivos (como um escritor de renome, um pensador ilustre ou um velho sábio que influem no comportamento das pessoas ditando formas de comportamento por aceitação consensual produto de suas respectivas ascendências sociais). Porém, apesar de eu considerar meus chefes institucionais como pessoas que respeito e admiro, a advertência sobre meu comportamento foi um ato coercitivo que se realizou sob o uso da força, ou da ameaça do uso da mesma caso houvesse resistência (a minha possível e provável demissão). Em hipótese alguma foi um convencimento por ascendência social ou consciência coletiva.

Após algum tempo, me vi refletindo seriamente sobre o ocorrido. Talvez para eu poder absorver, digerir o ato de força do qual foi alvo, buscando entendê-lo de forma mais analítica e crítica, ainda que sofrendo as dores do constrangimento. Fiz isso na companhia de Hobbes, filósofo que eu ensinava aos meus alunos naquele momento.

Hobbes me mostrou que eu precisava superar a compreensão da restrição da minha liberdade (conteúdo da advertência institucional que recebi) como um ato simplesmente de exercício do poder de quem o possui frente a mim, alguém que não possui o poder, isto é, como um ato exclusivamente de desigualdade social (institucional) sem qualquer outro tipo de fundamento ou propósito.

Era preciso deixar os óculos anarquistas e libertários de lado para a compreensão mais crítica do ocorrido. Afinal, sou um professor que tento ser amigo de meus alunos, porém, ainda assim, detenho o poder de adverti-los, poder esse que os alunos não têm sobre mim. Lembrei-me de todas as formas de advertência e punições que utilizamos em nossos alunos que resistem a nossa autoridade, mesmo sendo esses alunos cordiais na maioria das vezes conosco. Hobbes me fez lembrar de alguns fundamentos da política, através da minha experiência como aplicador da força: a submissão civil (exemplo: a ordem nas salas de aula) não se confunde naturalmente com a aceitação da autoridade/ ascendência social. Nós professores experimentamos diariamente essa tese hobbesiana de que a certeza da impunidade mostra como é frágil a nossa autoridade. Por isso advertimos e punimos constantemente os alunos que resistem em nos ouvir, obedecer, enfim, a serem disciplinados.

O mais interessante é que as nossas salas de aula são exemplos notáveis de como nos comportamos em sociedade. Na sociedade, como nas salas de aula, as pessoas nunca se entendem sobre os valores, opiniões, conclusões, nunca alcançam a unanimidade para designar o que é verdade, a sabedoria, a virtude etc. Nesse contexto, espontaneamente cada um de nós pensa ter condições de chegar à verdade, à felicidade, a melhora de sua vida, enfim, de governar a si próprio. Nossos alunos são exemplos de como nós nunca somos animais que tendemos ao consenso e nunca nos inclinamos perante a “razão pura”.

Não obedecemos a alguém por ele estar com a Razão, mas sim por que seremos castigados se infringirmos a ordem. Em última instância, foi assim que ponderei quando fui advertido. Totalmente envolvido com as minhas paixões, convicções, totalmente justificadas pelas minhas razões, nunca seria capaz de entender o porquê fui advertido.

A paixão é o estado natural do ser humano. É o que o faz acreditar no futuro, a mudar de vida, a se empenhar no enfrentamento dos problemas a ser feliz e a buscar sempre o melhor para si. Por isso adoramos a liberdade e a esperança de que poderemos vencer. Só é necessário ter a coragem de tentar fazer o que for necessário. Porém, a felicidade e a liberdade (fundamentos de nossa existência humana), não estão sintonizadas com o bem comum e, dessa forma não podem ser o cimento da sociedade. Se buscarmos a realização de nossos sonhos, quase sempre não buscamos o bem comum.

Hobbes foi um dos primeiros filósofos políticos a afirmar que a sociedade é um conjunto de atividades que não tem como objetivo o bem comum, e que esse conjunto precisa exercer-se no quadro da paz. Nesse contexto, a possibilidade de gozar ao máximo, em paz, de todas as comodidades da vida, exige a segurança. O bem comum é algo inalcançável tendo em vista as paixões humanas, o consenso em torno de uma autoridade social é uma utopia entre os apaixonados pela vida e pela liberdade. Mas essa paz precisa ser construída entre as pessoas para que as mesmas possam viver seguras. Essa paz é produto do uso da força. Para que uma pessoa tenha espaço para realizar seus sonhos e desejos, outros precisam ser constrangidos em seu comportamento, pois todos, igualmente, precisam ter a chance de viverem e isso só é possível em paz.

Segundo Hobbes, no princípio existem indivíduos apaixonados e em luta (mesmo que latentes) em busca da realização de seus desejos, sonhos e convicções impossibilitando por causa disso a vida em comum e a segurança de todos. O problema político assim é o de encontrar uma solução, permitindo que esses indivíduos separados por suas paixões, retraídos aos seus interesses particulares, ciosos pela a conquista de seus objetivos, sejam integrados, apesar de tudo, numa totalidade em que se preserve o espaço de todos. Para tanto, o medo da punição ainda serve como um excelente instrumento.

É preciso uma legislação encarregada de disciplinar a insociabilidade natural dos homens apaixonados. Trata-se de obter um equilíbrio dos direitos de todos em meio ao antagonismo, que continua sendo a trama do social. É preciso que cada pessoa esteja ciente de que, pela aplicação da força, a agressividade dos demais se encontrará limitada e que a minha liberdade respeitará todas as demais (por medo da aplicação da mesma força sobre mim) e que, portanto, também não encontrará obstáculos para o seu exercício.

Nesse contexto, o poder é a condição para que a reciprocidade dos procedimentos corretos (base de uma sociedade racional) se torne alguma coisa crível. Para Kant, outro filósofo brilhante, objetivo da união civil seria o de garantir a independência de cada um frente ao arbítrio necessitante de outrem. Meu comportamento foi limitado para que fosse garantido a independência da instituição na qual trabalho e de suas linhas mestras ( e de todos aqueles que acreditam nela ) frente a minha vontade de realizar o meu sonho.

Por que reduzir o poder à proibição, à censura, à repressão? Por que pensar no poder enquanto limitador, dotado apenas do poder do não, conduzindo apenas a forma negativa do interdito. O poder é menos o controlador de forças que seu produtor e organizador. Deixemos de representar o poder como uma instância estranha ao corpo social e opor o poder ao indivíduo. O poder nos garante a vida em comum.

Que o poder pode limitar à sua maneira as minhas liberdades, tudo bem, mas nem por isso ele será mero (apenas) exercício de uma força repressiva. Sem essa força, cujos efeitos podem ser bem desagradáveis, não haveria paz, unificação e união nem sociedade. Portanto, não há comunidade sem unificação, não há unificação sem poder. A multidão se torna um corpo político apenas com o uso da força.

Somente o exercício de um poder é capaz de compensar o isolamento do homem em seus próprios sonhos e de reivindicar a sua condição de indivíduo inserido em uma sociedade.

Aprendi essa dura lição hobessiana "na pele" e assim de fato experimentei o poder. Porém, ainda quero realizar o meu sonho! Apenas tentarei de outra forma.

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